Título: Crescimento: deixem o mordomo em paz!
Autor: Gustavo Loyola
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2006, Opinião, p. A13

A divulgação dos números do crescimento do PIB brasileiro em 2005 tornou-se mais uma oportunidade para críticas à condução da política monetária. Para alguns, o desempenho pífio da economia no ano passado se deu por obra e graça do Banco Central, que teria mantido as taxas de juros excessivamente altas no período. É verdade que uma administração mais flexível do regime de metas poderia ter contribuído para um crescimento maior em 2005. Em particular, utilizando-se das bandas de tolerância, o BC poderia ter optado por uma convergência mais lenta da inflação para a meta, o que em tese teria implicado em menor sacrifício em termos de produto e emprego. No entanto, o BC não poderia nunca ter feito a mágica de elevar o crescimento do PIB para percentuais muito acima dos 2,3%. Uma discussão responsável sobre a execução da política monetária no ano passado jamais consideraria a possibilidade de que, em decorrência apenas de uma maior queda dos juros, o crescimento do PIB brasileiro pudesse ter atingido os elevados resultados observados em muitas economias emergentes. Por outro lado, ao se considerar a média dos últimos dez anos, seria absurdo atribuir o baixo desempenho da economia brasileira nesse período a erros do Banco Central. Tal explicação reducionista é que leva a sugestões desastradas como a de abandono do regime de metas ou a conclusões apressadas sobre a inconveniência de se atribuir qualquer grau de autonomia ao Banco Central. Nos crimes do crescimento, o papel do mordomo é rotineiramente atribuído ao Banco Central. É o suspeito de sempre, que está sempre à mão para levar a culpa pelo desempenho insatisfatório da economia. É a velha história da solução fácil e errada para um difícil problema. A escolha preferencial do BC para o papel de vilão geralmente decorre de rasteira simplificação sobre as causas do crescimento econômico e de um conveniente exercício de busca de bodes expiatórios para o fracasso ocorrido alhures. É útil lembrar que o aperto monetário iniciado no final de 2004 e continuado na maior parte do ano passado surgiu da necessidade de impedir a aceleração da inflação, que já se prenunciava tantos nos resultados observados quanto nas expectativas dos agentes econômicos. O bom desempenho do PIB em 2004 veio, por várias razões, acompanhado de uma tendência de piora do ambiente inflacionário, o que exigiu a ação contracionista do BC. Como ensinam os livros, a política monetária afeta, no curto prazo, o produto e o emprego, e há sempre um custo a pagar para a contenção da inflação em níveis aceitáveis.

Ao ignorar a fonte real dos problemas, a classe política acaba por contribuir para a própria mediocridade do crescimento no futuro

Desse modo, se algo de errado existe, é essa tendência persistente da economia brasileira de deslizar facilmente para a inflação assim que se verifica uma aceleração relativamente modesta da atividade econômica. Foi assim em 2000 e também em 2004. Daí a curva de crescimento da economia nos últimos anos ter o formato de um dente-de-serra, mostrando características de "stop-and-go". O mordomo da história apenas cumpre o seu dever institucional. A política monetária não pode ser responsabilizada pelo crescimento medíocre do Brasil vis-à-vis outros países emergentes. Aliás, a inexistência de "trade-off" no longo prazo entre produto e inflação é uma das idéias mais consagradas da macroeconomia contemporânea, apesar da persistência no imaginário de muitos da noção de que a emissão monetária é fonte saudável de crescimento e de bem-estar de um país. O mais lamentável é que, num ano de eleições gerais, a discussão dos problemas do crescimento focada no desempenho do BC é desperdício retórico que pode ter conseqüências graves mais adiante. Ao ignorar a fonte real dos problemas, a classe política não apenas deixa de responder aos anseios do eleitorado, mas também acaba por contribuir para a própria mediocridade do crescimento no futuro. Perde-se uma oportunidade de se estabelecer, na opinião pública, um nexo causal entre algumas mazelas brasileiras e o pífio desempenho econômico. Com isso, as reformas continuam sendo, no imaginário popular, uma discussão etérea, visando tão somente transferir privilégios de uns para outros. Não há como o Brasil crescer de forma sustentada sem embarcar num programa ousado de reformas. Mesmo deixando de lado a visão ingênua de que o processo de reformas depende apenas da vontade da classe política, é possível diagnosticar que, no governo Lula, o ímpeto reformista ficou bem aquém do possível, provavelmente porque a maioria dos integrantes do atual governo não crê na utilidade das reformas ou tem seus olhos teimosamente fixados no passado. Aliás, não é somente mera coincidência o fato de o BC ser o inimigo público número um para nove entre dez "companheiros" do presidente Lula... Para escaparmos da armadilha do crescimento, é fundamental, por exemplo, conter a expansão do gasto público. Os bons resultados em termos de superávit primário escondem um caos nas contas públicas brasileiras. Observa-se, de um lado, o crescimento persistente das despesas do governo como proporção do PIB, em razão principalmente da tendência de aumento continuado das despesas com previdência e assistência social. De outro, verifica-se a elevada carga tributária brasileira, bem acima do razoável para países com a mesma renda per capita. A resultante disso tudo é um Estado inchado que atrapalha o funcionamento da economia e cujos serviços aos cidadãos são de péssima qualidade ou inexistentes. Apesar disso, de forma lastimável, o debate econômico tende a ficar restrito praticamente à suposta má condução da política monetária, a julgar pelas manifestações de políticos do PT e da oposição. Como numa novela policial, o problema não é apenas o de acusar um inocente; o pior é deixar o verdadeiro criminoso solto. Pois esse culpado ainda cometerá muitos crimes mais adiante.