Título: Disciplina fiscal e o futuro do euro
Autor: J. Bradford DeLong
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2006, Opinião, p. A13

Se nada mudar, o terreno em que o euro se apóia poderá começar a tremer

Nos EUA, os Estados com políticas fiscais irresponsáveis são punidos. Seus bônus são vendidos com deságio, em comparação com os títulos de Estados melhor administrados. O serviço mais caro da dívida que eles têm de honrar funciona, em certa medida, como forma de punição contra a tentação de gastar agora e pagar mais tarde. Evidentemente, a disciplina do mercado não é perfeita: o mercado de bônus não "enxerga", em grau substancial, obrigações futuras implícitas (como compromissos de pagamentos de aposentadorias). Ainda assim, essa disciplina fiscal imposta, combinada com os procedimentos orçamentários internos dos próprios Estados individuais, evitou a ocorrência de uma crise fiscal em larga escala em nível estadual nos EUA desde a Grande Depressão. Voltemos, agora, nossa atenção para a Europa. Antes do advento do euro, houve muitas crises fiscais em diferentes países no sul da Europa que produziram ondas de inflação elevada. Mas, depois da adoção da moeda única, a solução de crises fiscais por meio de inflação ficou obstruída, pois agora é o Banco Central Europeu (BCE) que controla a política monetária. Ainda assim, apesar de os países não poderem mais contar com a inflação para solucionar sua finanças desequilibradas, a moeda única permite que eles aproveitem a capacidade de endividamento pertencente na realidade a outros membros da União Européia (UE) para estender seus gastos e adiar sua prestação de contas política durante períodos de "laissez les bons temps roulés". Para eliminar essa possibilidade, a UE criou o Pacto de Estabilidade e Crescimento: os déficits governamentais tinham de ser inferiores a 3% do Produto Interno Bruto (PIB). Na semana passada, o governo da Alemanha - o país da UE que antes exibia maior prudência e disciplina fiscal - rompeu, pelo quinto ano consecutivo, as regras de disciplina fiscal impostas pelo pacto, e o fez sem pedir (grandes) desculpas. O ministro das Finanças alemão, Peer Steinbrueck, sinalizou que espera da Comissão Européia (CE) a aplicação de algumas sanções à Alemanha - a credibilidade do pacto, disse ele, ficaria em questão se nenhuma medida fosse tomada. Assim, desta vez a Alemanha não impediria as sanções, como o fez há dois anos e meio. Mas Steinbrueck também deixou claro que espera que qualquer penalidade em reação ao déficit fiscal de seu país - previsto em 3,4% do PIB - seja simbólica e não custe a seu governo ou à sua economia algo de significativo. O Pacto de Estabilidade e Crescimento não está - ou ainda não está - funcionando sequer de longe da maneira que se pretendia. Como fica a disciplina de mercado? A inclinação do governo alemão para emitir mais papéis de endividamento e incorrer em maiores déficits estará limitada porque o mercado distingue - e pune - os países que permitem um enfraquecimento de suas posições fiscais?

Quando o BCE aperta a política monetária, não são feitas as transferências necessárias para tornar o euro suportável a regiões já em recessão

Em uma palavra, não. Os juros sobre dívidas soberanas denominadas em euros dos 12 governos da zona do euro são todos muito similares. Assim, o mercado não parece importar-se com que os países tenham diferentes potenciais de geração de exportações para bancar os fluxos financeiros necessários para honrar suas dívidas, ou diferentes taxas atuais e projetadas de endividamento em relação ao PIB. Willem Buiter, da Universidade de Amsterdã, e Anne Sibert, da Universidade de Londres, acreditam que a disposição do BCE foi de, na prática, aceitar toda a dívida da zona do euro como colateral, o que comprometeu a disposição do mercado de exercer o papel de "polícia" da prudência fiscal. Ao valer-se a Alemanha da parcela marginal de sua dívida como colateral para um empréstimo de curto prazo ou como componente fundamental de um acordo de recompra para obter liqüidez, é muito mais provável que o valor dessa parcela seja determinado nos termos segundo os quais o BCE a aceite como colateral do que por seus fundamentos. O fato de o BCE considerar todas essas dívidas como igualmente sólidas fontes de respaldo à liqüidez desconsidera qualquer análise de diferenças de risco soberano de longo prazo. No longo prazo, isso é perigoso. Tanto disciplina de mercado como administração fiscal sensata são necessárias para criar uma chance razoável de estabilidade de preços no longo prazo. Caso hoje não sejam aplicadas penalidades de mercado punindo condutas que poderão tornar-se irresponsáveis, ou se inexistirem os mecanismos institucionais que dão voz a gerações futuras, incorreremos em graves riscos - possivelmente não hoje ou amanhã, mas algum dia, e pelo resto de nossas vidas. Com o passar do tempo, o advento da moeda única e a maneira como o euro foi implementado está gerando mais e mais inquietação. A política monetária como um todo para a zona do euro inteira é excessivamente deflacionária. Quando o BCE aperta a política monetária, não estão sendo feitas as transferências necessárias para tornar a moeda comum suportável a regiões perdedoras e já em recessão. As fundações institucionais de política fiscal estável de longo prazo estão sendo solapadas. E agora, argumentam convincentemente Buiter e Sibert, o BCE está dando ao mercado margem mais estreita do que deveria para premiar o poupador e punir o perdulário. Ainda não aconteceu nenhum deslizamento de terra, e não ocorrerá por algum tempo. Mas, se as coisas não mudarem, o terreno em que o euro se apóia poderá começar a tremer.