Título: A síndrome de Peter Pan
Autor: David Kupfer
Fonte: Valor Econômico, 08/03/2006, Opinião, p. A13

Não há quem não conheça a saga de Peter Pan, o menino que não queria crescer. Em 1983, inspirado nas despretensiosas aventuras do já centenário personagem, Dan Kiley, um psicólogo americano, publicou "A Síndrome de Peter Pan", um dos maiores best-sellers da literatura de auto-ajuda. Nessa versão psicológica, a recusa em crescer do personagem mantém relação direta com uma estratégia de fuga dos penosos compromissos impostos pela dura realidade da vida adulta. A divulgação pelo IBGE da taxa nanica de 2,3% para o crescimento da economia em 2005 deixou o Brasil na indesejável situação de Peter Pan dentre os países emergentes. Mas afinal, quais compromissos da vida adulta esse país que tem medo de crescer quer evitar? Nesse início de ano eleitoral, a reivindicação da retomada do crescimento alcançou a unanimidade nacional. Os diagnósticos apontam a política monetária de juros estratosféricos, a política fiscal incoerente e a política cambial suicida como as principais causas dos baixos níveis de investimento privado e público que caracterizam a economia brasileira nos últimos anos. Embora essencialmente correta, essa análise esconde uma parte importante do problema: o componente autônomo do investimento, isto é, a parcela da formação de capital que é relacionada ao fenômeno da concorrência. Como freqüentemente mencionado pelos próprios empresários, as forças competitivas que agem na indústria, expressas nas estratégias adotadas pelas empresas visando manter ou elevar suas participações nos mercados, constituem importantes elementos geradores de investimentos. No entanto, no plano macroeconômico, essas forças são geralmente desconsideradas, como se seu resultado agregado fosse nulo ou pouco significativo. Em termos gerais, competitividade pode ser entendida como a capacidade de a empresa formular e implementar estratégias que permitam ampliar ou conservar, de forma duradoura, uma posição sustentável no mercado. Porém, se observados dinamicamente, tanto desempenho quanto eficiência são resultados de capacitações acumuladas pelas empresas que, por sua vez, decorrem das estratégias competitivas adotadas em função de suas percepções quanto ao processo concorrencial e ao meio ambiente econômico onde estão inseridas. A competitividade empresarial relaciona-se, portanto, às competências centrais em termos de custos e preços, qualidade, ritmo de inovação etc. manejadas pelas empresas e à criação de novas competências em função dos requisitos impostos pela concorrência nos mercados, a chamada capacitação dinâmica. Em geral, as teorias macroeconômicas do investimento desconhecem ou incorporam de modo insuficiente a dinâmica que é dada pela existência de concorrência. Na maior parte dos casos o sistema produtivo é descrito como se fosse formado por uma única empresa ou por alguma noção de empresa representativa. O problema decorrente dessa opção metodológica é que a dinâmica que surge da diversidade dos agentes é desprezada.

É necessário que a política econômica brasileira esteja conectada a alguma visão de mudança desejada nas empresas e na economia

Por outro lado, cada empresa é parte integrante de um sistema econômico que favorece ou restringe a realização do seu potencial competitivo. Em mercados pouco dinâmicos, embora fábricas menos eficientes sejam alijadas da indústria, as empresas de maior capacidade de sobrevivência se expandem preferencialmente por meio da aquisição daquelas de pior desempenho, ocupando suas parcelas de mercado sem ampliar a capacidade produtiva e sem renovar o parque industrial. Empresas que atuam em mercados estagnados tendem a introduzir inovações pontuais, substituindo equipamentos apenas em etapas críticas do processo produtivo e adotando apenas parcialmente os novos métodos de trabalho. Principalmente em indústrias de maior intensidade de capital (as indústrias de processo contínuo), a atualização tecnológica exige muitas vezes grandes blocos de investimento, inviabilizados na ausência de perspectivas favoráveis de crescimento das vendas. Como resultado, a produtividade pára de crescer ou cresce muito lentamente, trazendo efeitos negativos sobre as perspectivas de crescimento econômico. Inversamente, mercados dinâmicos estimulam as empresas à busca contínua de competitividade e permitem a obtenção de economias de escala e escopo que efetivamente viabilizam esta maior competitividade. A constante renovação do parque industrial, com a introdução de novos equipamentos e das tecnologias atualizadas neles incorporadas, assim como a instalação de novas fábricas, é um processo natural em mercados que se expandem. No Brasil, como conseqüência da estagnação que perdura desde a década de 1980, as empresas adotaram estratégias de sobrevivência que seguiram basicamente três etapas: iniciou-se com um profundo ajuste patrimonial, no começo dos anos de 1980, envolvendo redução do endividamento e aumento de receitas não-operacionais, através da realização de aplicações financeiras em detrimento de investimentos produtivos; prosseguiu com a redefinição de mercados, buscando as empresas o aumento de seus coeficientes de exportação ao longo dos anos 1990; e, finalmente, chegou aos processos produtivos em um ajuste modernizador que envolveu primeiramente as empresas líderes e ainda está em processo de aprofundamento e difusão pelo restante da indústria brasileira. Em nenhum momento, salvo exceções como as ocorridas nos setores automobilístico e de telecomunicações, verificaram-se as condições para a adoção de estratégias de inovação tecnológica capazes de dinamizar o ritmo dos investimentos. A política econômica, portanto, é muito mais do que um elenco de medidas estabilizadoras de cunho monetário, fiscal e cambial. A política econômica também define as bases sobre as quais as estratégias de crescimento de longo prazo se apóiam e, querendo ou não, arbitra os ganhadores e perdedores ao longo dos processos de ajustamento. Como a competitividade é, via de regra, um valor normativo, isto é, embute um juízo de valor, promovê-la tem pouca utilidade como um fim em si mesmo. É necessário que a política econômica esteja conectada a alguma visão de mudança desejada nas empresas e na economia. Talvez seja essa a penosa responsabilidade que o Peter Pan tupiniquim tanto deseja adiar.