Título: Japão recupera-se sem reformas
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 08/03/2006, Opinião, p. A13

O que se conseguiu foi uma limpeza parcial da herança dos anos de bolha econômica

O Japão está de volta. Após quase uma década e meia de desapontamento, o crescimento está vigoroso, a deflação está desaparecendo e a confiança está voltando. Será tudo isso a recompensa pelas reformas de Junichiro Koizumi? "Exatamente o contrário" é a resposta. Se o primeiro-ministro tivesse feito o que havia proposto inicialmente - empreender uma reforma estrutural e reduzir déficits fiscais - o resultado teria sido uma catástrofe. Felizmente, conselhos mais sensatos prevaleceram. Em que sentido essa é uma economia japonesa não-reformada? O país continua sendo um Japão cujo crescimento depende fortemente de exportações e investimentos, cujo setor privado poupa muito mais do que, proveitosamente, pode investir no mercado doméstico e cujas companhias desperdiçam capital. O Japão não está em recuperação por ter uma economia novinha em folha. O que se conseguiu foi uma limpeza parcial da herança dos anos de bolha econômica. Entre o quarto trimestre de 2001 (a última depressão profunda do Produto Interno Bruto - PIB) e o quarto trimestre do ano passado, a economia cresceu 9,9% em termos reais. As exportações líquidas geraram espantosos 30% de aumento na demanda, os investimentos contribuíram com 18% e o consumo governamental foi responsável por outros 14%. O consumo privado gerou meros 39% do crescimento da demanda. A acentuada melhoria nas exportações líquidas teve duas explicações principais: a desvalorização do câmbio real e a demanda da China por tecnologia japonesa. Entre dezembro de 1999 e fevereiro deste ano, a taxa de câmbio real japonesa foi desvalorizada em quase 30%, segundo o JP Morgan. Isso não foi por acaso: as reservas japonesas em moeda estrangeira cresceram US$ 547 bilhões entre dezembro 1999 e o fim do ano passado. Por outro lado, as exportações para a China responderam por 30% do crescimento total exportações do Japão entre 2001 e 2005. O Japão, em suma, continuou a extrair muito de seu dinamismo da demanda externa. O país também continua a depender pesadamente de investimentos empresariais. Isso pode não parecer surpreendente, até que nos damos conta de quão supercapitalizada está a economia segundo padrões mundiais. A participação do investimento empresarial japonês no PIB é muito maior do que em outros países de alta renda. Mais recentemente, esse investimento em relação ao PIB revelou-se 40% maior do que na Alemanha ou nos EUA. Esse investimento elevado não gerou alto crescimento: ao longo da década passada, a tendência ficou em torno de 1% ao ano. Tampouco espera-se que esse investimento gere crescimento rápido no futuro: o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima o potencial de crescimento japonês em 1,5% ao ano. Incrivelmente, a companhia japonesa média necessita 70% mais capital para produzir um determinado valor do que uma empresa americana. Se o Japão fosse uma economia verdadeiramente reformada, na qual os administradores fossem obrigados pelos acionistas a atingir retornos sobre o capital em nível de competitividade mundial, o investimento estaria em colapso. Em vez disso, o investimento está, uma vez mais, empurrando o Japão para a recuperação. Isso simplesmente comprova que o Japão - e os japoneses - continuam sendo peculiares. O Japão, portanto, está longe de reformado. Isso, porém, é algo excelente, ao menos de curto a médio prazo, porque o grande problema continua sendo a absorção do nível elevado de poupança do setor privado, que, em 2003, estava perto de 30% do PIB. Enquanto as taxas de poupança domiciliar caíram, a poupança empresarial cresceu (pois os lucros cresceram), fazendo com que a proporção global ficasse praticamente inalterada.

Desafio do país é criar uma economia que não dependa tanto de elevados déficits fiscais e investimentos empresariais dissipadores

A persistência de tão grande poupança privada no numa economia em lento crescimento cria uma grande dificuldade: como essas poupanças deverão ser absorvidas? Parte da resposta tem sido a guinada do setor público para um déficit. Outra parte da resposta está no superávit em conta corrente, que tem permanecido acima de 3% do PIB desde 2003. Mas a maior parte da resposta tem sido a persistentemente elevada taxa de investimentos. No geral, o investimento ficou em 24% do PIB em 2004. O fato de um investimento tão alto ter gerado pouco crescimento no passado recente (e acredita-se que gerará pouco crescimento no futuro) é evidente. Mas o que teria acontecido sem ele? Sem outra compensação, o resultado não teria sido estagnação, mas depressão. O novo Japão é, basicamente, o velho Japão. O país continua a depender de exportações competitivas, de um superávit substancial em conta corrente e no uso perdulário da poupança de seu povo para manter a demanda em expansão em sintonia com sua desapontadora taxa de crescimento potencial. Mas, será que isso significa que nada foi conseguido no últimos 15 anos? Longe disso. O colapso da bolha econômica deixou o Japão com uma enorme "ressaca". Como Richard Koo, da Nomura Securities, assinalou em livro publicado em 2003 (Balance Sheet Recession, John Wiley & Sons), a queda nos preços dos ativos no Japão, especialmente no mercado imobiliário, reduziu o valor total de todos os ativos num montante igual a 2,7 vezes o PIB de 1989. Essa foi uma perda muito maior, em relação ao PIB, do que a sofrida pelos EUA na Grande Depressão da década de 30. Foi apenas devido à expansão fiscal e a uma política monetária frouxa que um desfecho comparável foi evitado no Japão. Além disso, à medida que o governo endividou-se ainda mais, o setor empresarial privado (financeiro e não-financeiro) teve condições de fazer uma limpeza em suas próprias contas públicas, preparando o terreno para a atual recuperação. Entretanto, também não devemos exagerar os progressos. Como destaca Andrew Smithers, da Smithers & Co., com sede em Londres, o endividamento líquido das famílias japonesas em 2003 era 317% da renda disponível. O número correspondente para as famílias americanas em 2004 era de apenas 185%. Uma vez que o endividamento líquido do governo japonês era de 80% do PIB, o setor empresarial continua extremamente endividado, segundo padrões internacionais. Essa é uma das razões pelas quais os juros precisam continuar baixos por muito tempo. No fim das contas, as autoridades japonesas fizeram a coisa certa: facilitaram a limpeza dos devastados balanços patrimoniais do setor privado. Em associação com o surto nas exportações, isso permitiu à economia voltar a crescer. Mas esse crescimento também continuará perdulário. Surge um novo desafio: criar uma economia que não dependa tanto de elevados déficits fiscais e investimentos empresariais dissipadores. Um país rico precisa de mais consumo. Mesmo hoje, o consumo domiciliar absorve apenas 57% do PIB. Nos EUA, são 70% do PIB. Para que tenhamos uma economia mundial mais equilibrada e um Japão economicamente mais saudável, essas proporções divergentes precisarão encontrar-se a meio caminho.