Título: Pecado capital é a mudança de regras
Autor: Maria Cristina Fernandes
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2006, Política, p. A5

A crença generalizada agora é a de que todos escaparão à degola, mas explicar a absolvição de parlamentares por uma onda espúria que teria se abatido sobre a Câmara dos Deputados, ajuda tanto a entender o que se passa lá quanto assistir aos 20 minutos do discurso do deputado professor Luizinho (PT-SP). A retomada dos julgamentos na Câmara deu-se depois da reversão do cenário de derrocada para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se há uma acusação da qual Lula não conseguiu se desvencilhar é a de que usou caixa 2 na campanha eleitoral. Depois de tudo quanto se provou de dinheiro não-contabilizado nos subterfúgios do poder central, o presidente volta a ser considerado o mais competitivo dos candidatos de outubro. Parlamentares não costumam agir deliberadamente em seu próprio prejuízo. Se o Congresso tivesse arranhado o pescoço de Lula teria mais motivos para dar o sangue dos seus, mas punições cabais não parecem estar em alta no mercado eleitoral. Um experiente analista de pesquisas de opinião diz que a expectativa da população já era baixa em relação a punições e que, portanto, novas absolvições não farão despencar a imagem do Congresso. Ninguém consegue imaginar toneladas de votos caindo em seu caminhão em decorrência da cassação de um parlamentar como Roberto Brant (PFL-MG), nem que para isso fechem os olhos para os R$ 20 mil do professor Luizinho. O Congresso que melhorou sua imagem na carona da decolagem de Lula não tem as mesmas prerrogativas do Executivo para mudar a agenda política com boas notícias no horário nobre. Mas consegue marcar bons pontos quando adere a práticas republicanas como o fim da remuneração nas convocações extraordinárias, além do encurtamento do recesso - medidas que precederam a melhoria na avaliação do Congresso atestada pelas pesquisas de opinião. A despeito da violência da verticalização, persistir na tentativa de subverter as regras eleitorais a seis meses da eleição é dessas mudanças que jogam contra a integridade da Casa. Não há como justificar por que, tendo a norma do Tribunal Superior Eleitoral sido baixada há quatro anos só agora os parlamentares tenham resolvido dar atenção ao assunto. Neste Congresso o gosto pelo casuísmo ganhou asas com a investida do deputado João Paulo Cunha (PT-SP) em nome de sua própria reeleição à presidência da Câmara, instituto sem precedentes na história da Casa.

Reeleição na Câmara abriu portas à crise

Esta parece ter sido a única lacuna do competente relatório do deputado Cezar Schirmer (PMDB-RS) recomendando a cassação do parlamentar. Em suas quase 70 páginas, o relatório concentra-se na eleição do deputado, uma das poucas, na história recente da Câmara, sem disputa, que deu a João Paulo quase 90% dos votos. Data dessa época sua aproximação com o publicitário Marcos Valério, que seria responsável por sua campanha de um candidato único e, depois, contratado para cuidar da imagem do presidente da Câmara que, só mais tarde se saberia, visava a prolongar sua permanência no poder. O relatório esmiuça como João Paulo transformou-se no verdadeiro braço de Marcos Valério no Congresso. Comprova o café da manhã que tomaram juntos na casa do presidente da Câmara na véspera do depósito feito pela agência do publicitário em nome do deputado. Também desmonta uma a uma as mentiras armadas pelo deputado até o reconhecimento de que sua mulher fora à agência para fazer o saque. Busca as normas de entrega dos Correios para comprovar que uma fatura de TV a cabo não teria como estar em Brasília dois dias depois de sua data de emissão em São Paulo a tempo de justificar a ida da mulher de João Paulo à agência do Banco Rural. E, finalmente, lembra que o presidente da Câmara, só depois de estourado o escândalo, lembrou-se de depositar na conta do Fome Zero o valor correspondente aos mimos presenteados no ano anterior pelo publicitário ao deputado e a sua secretária. O saque (R$ 50 mil) e o mimo (uma caneta Mont Blanc) são mínimos face às benesses distribuídas pelo valerioduto. Não é por eles que está na mira. As mentiras sustentadas pelo deputado até ser desmascarado como sacador de Marcos Valério por si só já justificariam sua cassação. Mas foi o uso que fez dessas relações escusas para convencer seus pares a aceitar a mudança de regras consuetudinárias da Casa que torna sua cassação um imperativo. Foi João Paulo quem pariu Severino Cavalcanti e escancarou as portas do Congresso para a crise. Ao subestimar o valor das normas que regem a Casa representante do povo brasileiro, o ex-presidente da Câmara passou a borracha na linha que separa a cintura no embate entre adversários da política. Roberto Jefferson e José Dirceu, foram cassados por encarnarem os princípios que regeram a nova ordem congressual. Dirceu tem uma legião de seguidores que ainda hoje acreditam que ele fez o que fez pelo partido e pelo governo. João Paulo tem o agravante de ter operado em causa própria em prejuízo das poucas tradições que o Congresso tem conseguido manter em meio a sua atribulada história. Merece ser cassado mesmo que isso passe desapercebido pelo eleitorado.