Título: Um veto certeiro à nova tentativa de calote rural
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2006, Opinião, p. A14

Os motivos para vetar na íntegra o projeto de lei que estabeleceu a renegociação da dívida dos agricultores do Nordeste são sólidos e podem ser resumidos no argumento apresentado pelo presidente Lula: "contrariedade ao interesse público". Em meio à paralisia do Congresso desde a eclosão do escândalo do mensalão, deputados que compõem a bancada ruralista arregimentaram apoios para aprovar um projeto que trazia benefícios gerais e irrestritos às custas dos cofres públicos. Não foi a primeira vez e certamente não será a última. Congressistas tentam agora articular a derrubada do veto presidencial. Os patrocinadores da proposta já haviam tentado obter vantagens aproveitando-se da fragilidade da base governista. Nas discussões da Lei de Diretrizes Orçamentárias, ensaiaram um bloqueio caso não constasse no texto a dotação de recursos da União para a repactuação ou alongamento de dívidas originárias de operações de crédito rural e agroindustrial em 2006. A iniciativa não prosperou. Então, no fim do ano passado, obtiveram a aprovação do projeto de lei 142, que estabeleceu as condições para a repactuação dos contratos de toda a região Nordeste. As regras por eles criadas mostraram com clareza que o principal objetivo não era aliviar eventuais dificuldades enfrentadas pelos produtores, mas a de simplesmente garantir que muitos dos devedores contumazes de sucessivas renegociações continuassem a não por a mão no bolso para quitar suas dívidas. No esquema concebido, os contratos com valor de até R$ 35 mil teriam juros negativos em 1,5% e não pagariam qualquer tipo de correção monetária. Para a faixa dos R$ 35 mil aos R$ 200 mil, simplesmente não haveria juros nem correção. Acima dos R$ 200 mil, os juros seriam de 2% ao ano. Não existe esse tipo de mamata em nenhum lugar do país hoje e é de pasmar que o Congresso tenha aprovado um projeto tão irresponsável. Ele não pára por aí: a repactuação das dívidas seria por um quarto de século, com quatro anos de carência. Não há crise agrícola que justifique nada parecido. Como é óbvio, o preço da conta a pagar para "socorrer" endividados produtores do Nordeste, onde se encontram usineiros caloteiros e outros grandes e médios proprietários que vivem do dinheiro alheio sem se dar à preocupação de cumprir suas obrigações, é astronômico. Pelos cálculos do governo, o custo atinge R$ 16,7 bilhões, nada menos que o equivalente a recursos do Bolsa Família para atender 11 milhões de famílias por dois anos. O projeto usa a suposta ingenuidade do contribuinte como preâmbulo. O pacote que tentaram impingir aos cofres públicos não se destinava a salvar os pequenos produtores nordestinos, que trabalham duro em condições sub-humanas para tirar o sustento da terra. Os maiores beneficiários são os grandes produtores, em uma região marcada pela desigualdade e pela concentração da terra. Segundo o Banco do Brasil, o principal operador de crédito do campo, 80% dos contratos firmados com a instituição são de até R$ 50 mil. E, segundo dados da assessoria da Presidência da República, em um universo de 3 milhões de produtores rurais, há 10 mil devedores. "A grande dívida está concentrada em 1.727 contratos, que representam 98% do total", disse José Graziano ao Valor. E não se pode acusar os sucessivos governos de insensibilidade, mas talvez do contrário. A securitização de dívidas ocorreu em 1995, e um programa de saneamento de ativos foi criado em 1999. Em boa parte dos casos, são as dívidas já repactuadas por esses programas que o lobby agrário quer novamente renegociar com vantagens extraordinárias para a minoria de sempre. O governo Lula seguiu o caminho correto. A MP 285, assinada na terça-feira, amparou as dívidas que ainda não tenham sido renegociadas. Essa proteção cobre a maioria dos agricultores, que pagarão juros entre 6% e 8,75%. No mesmo dia em que a MP saiu no Diário Oficial, o secretário da Receita, Jorge Rachid, disse no Congresso, para afastar fortes pressões, que está descartada a idéia de um novo Refis, capitaneada por várias entidades da indústria. Novo socorro consagraria a cultura do não pagamento - aquela em que devedores, na última hora, serão sempre resgatados por refinanciamentos. Apesar de combalido politicamente, o governo tem conseguido evitar o assalto aos cofres públicos.