Título: É preciso escapar da sobreapreciação maligna
Autor: Luciano Coutinho
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2006, Opinião, p. A15

Mantida a firme expansão do comércio mundial com farta liquidez internacional, é plausível um período prolongado (de dois a três anos) de significativa apreciação cambial com sérias conseqüências negativas para a indústria brasileira. Vejamos. Vários fatores (a maioria deles associados aos juros altos) tendem a sustentar a sobreapreciação da taxa de câmbio: a) os preços de várias commodities relevantes na pauta de exportação tendem a permanecer favoráveis ou mesmo ainda mais altos mercê da forte expansão do comércio mundial (considerando o impacto das importações chinesas); b) os ingressos de capitais externos também tendem a crescer persistentemente em função dos elevadíssimos juros reais brasileiros, que excitam operações de "carry trade" (via swaps cambiais do tipo NDF ou via antecipação de ingressos de exportação) e, ainda, por causa da expansão dos investimentos diretos estrangeiros; c) os ingressos de capitais também tendem a ser engrossados pela crescente e vigorosa captação de recursos no exterior por parte das grandes empresas brasileiras com bom rating e, ainda, pela rolagem integral das dívidas de empresas com rating apenas satisfatório em condições vantajosas (vis-à-vis os custos do crédito e do capital no mercado doméstico); d) finalmente, a apreciação cambial tende a ser prolongada pelo fato de que, dado o significativo diferencial entre a taxa de juros doméstica e a taxa internacional, é muito elevado o custo fiscal das operações de intervenção cambial por parte do BC, o que inibe a sua efetivação em escala suficientemente grande (a la países asiáticos).

Esse conjunto de fatores tende, assim, a manter sobreapreciada a taxa de câmbio. A apreciação só não se aprofundaria ainda mais (abaixo de R$ 2,00 por dólar) por conta do estreitamento do diferencial entre a taxa real de juros brasileira (em queda lenta e gradual) e a taxa de juros mundial, que tende a subir progressivamente para uma faixa entre 5,0% e 6,0% nos próximos meses. Porém, se esse estreitamento for previsível e consistente com as expectativas de mercado, não ocorreria contração significativa de liquidez para as economias emergentes (cuja robustez externa melhorou muito nos três últimos anos). A forte expansão de outros gastos em moeda estrangeira (investimentos brasileiros, remessas, dispêndios com turismo no exterior e com importações de bens supérfluos) também contribui para evitar o aprofundamento da apreciação. Não obstante, mantidas essas condições, a taxa de câmbio tende a permanecer sobreapreciada, abaixo de R$ 2,30 por dólar, por um período suficientemente longo para provocar danos graves e irrecuperáveis à economia brasileira.

Obviamente esse ciclo de apreciação pode ser interrompido por turbulências globais. Há, como se sabe, um conjunto de riscos pendentes, e.g.: vulnerabilidade do dólar, tensões inflacionárias nos EUA catapultando os juros de longo-prazo, implosão da bolha imobiliária etc. Mas, se houver coordenação no G-7 e administração competente das expectativas pelo Fed, o ciclo pode prosseguir até 2009 ou 2010. Nesse caso o que será do desenvolvimento industrial brasileiro?

Nas condições atuais, o real tende a permanecer valorizado por um período suficientemente longo para provocar danos irrecuperáveis à economia

As perspectivas seriam sombrias. Ao invés de avanço competitivo, ocorreria um retrocesso generalizado (com poucas honrosas exceções) das estratégias de exportação com base manufatureira no país. Desde logo as transnacionais esvaziariam o papel exportador das suas plataformas no Brasil. Os mercados na América do Sul passariam a ser supridos a partir da Ásia ou do México. Minguaria o conteúdo local de partes e peças. O complexo automotriz brasileiro, que hoje ainda exporta vigorosamente, tenderia a encolher. Processo semelhante atingiria vários setores dominados por transnacionais (material elétrico, telecomunicações, máquinas agrícolas e outras famílias de máquinas). As possibilidades de algum avanço competitivo em bens eletrônicos de consumo, informática, automação seriam definitivamente soterradas.

O retrocesso alcançaria outras cadeias com potencial competitivo onde as empresas nacionais são expressivas, tais como: celulose-papel e produtos de papel, têxtil, vestuário, couro-calçados, artefatos e mobiliário de madeira, materiais cerâmicos. Muitos agronegócios (salvo os favorecidos por preços superfavoráveis) também sofreriam perdas. O desenvolvimento de oportunidades competitivas em serviços (turismo, consultoria, engenharia, criação de softwares etc.) ficaria amesquinhada. Nesse contexto negativo, aumentaria muito o risco de desnacionalização de empresas, tal como ocorreu durante a sobrevalorização cambial nos anos 90. Em suma, a apreciação cambial prolongada implica graves conseqüências nocivas para a economia e para a sociedade. Sacrifica empregos, inviabiliza inúmeras oportunidades de expansão competitiva em atividades de manufatura e serviços (especialmente nas mais intensivas em inovação), bloqueia investimentos e induz consumo supérfluo. Empobrece qualitativamente o perfil socioeconômico e reduz o potencial de crescimento do PIB.

Diante desta perspectiva inaceitável é preciso agir. O BC precisa intervir de modo pragmático. O foco deve ser o desmonte organizado e rápido da elevadíssima taxa real de juros. A proposta de solução através da remoção imediata e indiscriminada da proteção tarifária (para provocar um forte surto de importações) é inconsistente em si. Ao invés de funcionar como instrumento de promoção calibrada da competitividade microeconômica (em conjunto com o tratamento tributário) no contexto de uma política industrial contemporânea, uma abertura comercial radical apenas antecipará vários desastres e perdas de empregos, sacrificando a evolução consistente em direção à competitividade. As importações (especialmente de bens de capital) crescerão elástica e saudavelmente se a política econômica brasileira souber articular um ciclo de investimento. Já um tratamento de choque microeconômico para resolver uma distorção macroeconômica é mais um tiro no pé.