Título: As lições do Fed para o Banco Central
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2006, Brasil, p. A2

Em carta enviada ao senador Robert Menendez, do estado de Nova Jersey, Ben Bernanke, o novo presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, revelou sua preocupação com o crescente déficit orçamentário do governo americano, especialmente, com o rombo nas contas da previdência social. Divulgada ontem, a carta é um belo exemplo de como atua um banco central autônomo. "Estou muito preocupado quanto à perspectiva de médio e longo prazo do orçamento federal", declarou Bernanke ao responder a um pedido de informação feito pelo senador Menendez. Tal qual seu antecessor - Alan Greenspan -, o presidente do Fed deixou claro que, a longo prazo, crescentes déficits nas contas do governo colocam em risco o padrão de vida dos americanos. "Como resultado disso, acho que seria desejável dar passos concretos para diminuir a trajetória esperada do déficit", sugeriu Bernanke. O presidente do BC americano não fala no vazio. No início dos anos 90, o governo dos EUA produzia déficits orçamentários em torno de 4% do PIB. Na era Clinton (1993-2001), a situação inverteu-se. Em oito anos de mandato, Bill Clinton diminuiu as despesas de 22% para 19% do PIB e aumentou as receitas de 18% para 21% do PIB. As contas saíram de um déficit de 3% do PIB para um superávit de 2% do PIB. Com os saldos positivos gerados a partir de 1998, Clinton adotou um plano de redução gradual da dívida pública. Em 2000, anunciou que, se continuasse gerando aqueles superávits, o governo eliminaria sua dívida interna em 13 anos. O plano ambicioso fez Greenspan refletir sobre um problema que, certamente, toda autoridade monetária gostaria de ter: "como viver sem dívida?". A questão que atormentava Greenspan, e ele tornou isso público, era saber que títulos passariam a balizar a definição da taxa de juros no mercado privado, quando não houvesse mais papéis do governo na praça. O fato é que, na era Clinton, o governo encolheu e o setor privado expandiu. A economia americana cresceu de forma ininterrupta durante mais de cem meses, vivenciando uma das maiores fases de prosperidade de sua história. Em 2001, George W. Bush assumiu e mudou tudo. Cortou os impostos dos mais ricos e voltou a produzir déficits no orçamento. Aumentou as despesas para 20% do PIB e reduziu as receitas para 17% do PIB. A longo prazo, a política de Bush terá um sabor amargo para os Estados Unidos. Some-se a ela o fato de que, no fim desta década, os americanos da geração "baby-boomers" (os nascidos durante a explosão populacional do pós-guerra) começarão a se aposentar. E também a previsão, feita pelo "Congressional Budget Office", a assessoria técnica da comissão de orçamento do Congresso americano, de que, nos próximos 24 anos, os gastos federais crescerão cinco pontos percentuais do PIB, graças ao crescimento da população. A mistura desses elementos é explosiva. Diante disso, o que faz o Federal Reserve? Alerta o Congresso e a sociedade de seu país, avisando-os que, mantida a política de irresponsabilidade fiscal dos atuais governantes, a economia americana crescerá menos no futuro ou mesmo entrará em colapso. Em resposta às advertências do Fed, os parlamentares passam a cobrar atitudes do governo e a rejeitar medidas que possam pôr em perigo a prosperidade do país.

Nos EUA, BC fala com Congresso e sociedade

No Brasil, talvez já tenha passado da hora de o Banco Central, dado o grau de autonomia operacional com que atua, se comunicar mais com o Congresso Nacional e a sociedade. Nos EUA, uma vez a cada seis meses, o presidente do BC vai ao Parlamento prestar contas de suas atividades. Ele vai lá, lê um relatório sobre o estado da arte da economia e responde, durante horas, a perguntas dos parlamentares. Nesses relatórios, explica os limites de sua atuação, dada a situação fiscal proporcionada pelo governo. Por aqui, quem tem cumprido parcialmente esse papel, por incrível que pareça, é Joaquim Levy, secretário do Tesouro Nacional. Na semana passada, passou quase despercebido um documento divulgado pelo Tesouro, em que Levy, com muita elegância - e um bom grau de constrangimento -, chama a atenção para o fato de que, em 2005, o forte crescimento real do salário mínimo explica "uma substancial parte do aumento dos gastos públicos do governo federal". "Em 2005, as despesas associadas a benefícios (da previdência social) cresceram 16,7% em valores nominais, relativamente a 2004. Essa taxa é aproximadamente 80% maior que a do crescimento do PIB nominal médio de 2005 (9,4%)", diz o texto oficial. Para 2006, deve-se esperar outro incremento nessa despesa, uma vez que o salário mínimo terá aumento real de quase 12% em maio. Isto, sem falar no crescimento histórico de 2% a 3% ao ano dos gastos previdenciários. Recentemente, Levy se queixou do silêncio do BC tanto para dentro quanto para fora do governo. Segundo ele, isso impede que a autoridade monetária convença a sociedade e o mercado, além do governo, dos limites de sua atuação diante da escalada dos gastos públicos. As queixas de Levy mostram que não tem havido sequer comunicação do BC com o Ministério da Fazenda. Levy está certo, mas, desgraçadamente, há razões para o Banco Central se comunicar tão pouco. O governo, como bem lembrou Ilan Goldfajn em entrevista ao Valor, é hostil ao BC. No PT e mesmo dentro do Palácio do Planalto, a Fazenda e o BC são vistos como territórios capturados pela banca nacional e internacional. Imagine se, em seus documentos oficiais, os diretores da instituição mencionem os efeitos perversos do aumento eleitoreiro do salário mínimo em 2006. Seria um pandemônio. Às vésperas das reuniões do Copom, como bem mostraram Claudia Safatle e Alex Ribeiro no Valor, assessores palacianos dizem que o presidente da República exigiu corte de xis por cento. O BC não segue a "recomendação" e, depois das reuniões, os mesmos assessores comentam que o presidente ficou irritado e que vai enquadrar a diretoria. Tudo isso mostra que o grau de incompreensão do papel da autoridade monetária é absoluto em inúmeras instâncias do governo Lula. Pior para o país.