Título: 'Paraísos' europeus atraem empresas brasileiras
Autor: Marta Watanabe e Zínia Baeta
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2006, Brasil, p. A3

Tributação Redutos tradicionais, como Cayman e Bermudas, perdem espaço para destinos "politicamente corretos"

Os tradicionais paraísos fiscais, muito usados na década de 90, começam a perder espaço para um novo tipo de "paraíso". Cada vez mais empresas brasileiras montam holdings ou tradings baseadas em países que oferecem combinação de baixos impostos internos e acordos internacionais contra a dupla tributação. A maior parte dos "novos paraísos" está na Europa. "Politicamente corretas", as holdings e tradings européias têm a vantagem de não enfrentar as restrições legais reservadas aos paraísos fiscais. Atualmente, o Brasil prevê maior tributação para recursos que chegam dos paraísos ou os têm como destino. Uma holding húngara foi o caminho eleito pela Gerdau para adquirir a participação de 40% na espanhola Sidenor, compra anunciada no ano passado e concluída em janeiro. A Hungria oferece às holdings uma tributação de 16% - carga bem menor que os 34% do Brasil - sobre o lucro. O percentual ainda pode ser reduzido para 8% para a tributação sobre direitos sobre marcas e patentes. A estrutura das empresas, porém, pode ser mais complexa. A Companhia de Bebidas das Américas (Ambev) resolveu colocar na Europa uma holding que abriga boa parte de suas operações na América Latina, como a Maltería Pampa, na Argentina, e a equatoriana Cervecería Suramericana, e mais quatro empresas. Mesmo instaladas em países vizinhos ao Brasil, seus resultados são reconhecidos por uma longa cadeia no organograma do grupo, inclusive uma holding em outro continente, antes de chegar às demonstrações da Ambev. Os resultados passam antes pelo Uruguai, na holding Monthiers S/A, pela Jalua Spain, outra holding, desta vez na Espanha, chega ao Brasil na pouco conhecida Eagle Distribuidora de Bebidas, e só depois disso à Ambev. Cada vez mais comum entre as empresas no Brasil, a aparente linha sem fim de nomes, que inclui uma grande holding européia no controle de empresas em outros continentes, tem o intuito de economizar tributos nas operações. Estão entre os "novos paraísos", Espanha, Áustria, Luxemburgo, Holanda e Hungria. Alguns países, como Reino Unido, oferecem tributação diferenciada para tradings. Outros tributam o lucro a uma média de 30%, mas uma rede de tratados e incentivos internos reduz a cobrança. Dados do Banco Central mostram que os "novos paraísos" apresentaram aumento no estoque de investimento brasileiro direto em participações societárias superiores a 10%. Em Luxemburgo, esses recursos, de US$ 584 milhões em 2001, saltaram para US$ 3,1 bilhões em 2004. Na Holanda, de US$ 108 milhões para US$ 1,09 bilhão. Hungria, que tinha praticamente zero em 2001 passou a ter US$ 405 milhões em 2004. Com algumas exceções, os volumes de participação societária em tradicionais paraísos, se não diminuíram, ficaram estáveis. Ilhas Cayman teve volume reduzido de US$ 14,78 bilhões en 2001 para US$ 13,93 bilhões em 2004. Bermudas, de US$ 990 milhões para US$ 397 milhões. A preferência pelas holdings européias não passa despercebida pelo fisco. A estrutura societária da Ambev, que inclui a espanhola Jalua, foi alvo de autuação da Receita Federal, que exige o pagamento de Imposto de Renda sobre os lucros apurados no exterior. A Receita questiona a estrutura da empresa e cobra R$ 3 bilhões em tributos que teriam deixado de ser pagos sobre os lucros, além de juros e multa. A empresa discorda e o assunto está em discussão administrativa. A companhia alega que o imposto não é exigível e que o acordo assinado entre Brasil e Espanha protege os lucros da tributação do Brasil. A Ambev também questiona os valores envolvidos. Procurada, a cervejaria não se manifestou. O acordo assinado com a Espanha, por exemplo, é considerado bastante favorável às empresas brasileiras que têm controladas ou coligadas no exterior. O texto do acordo prevê que os lucros obtidos por uma controlada localizada na Espanha só são tributáveis naquele país. Não podem ser tributados no Brasil. Nem quando a controlada ou coligada da Espanha resolver distribuir lucros ou pagar dividendos à empresa brasileira. Nesse caso, o tratado diz que os dividendos ficam isentos. O dispositivo, segundo tributaristas, neutralizaria a legislação que, desde 1997, prevê a tributação de lucros obtidos no exterior e que desde 1999 determina o pagamento de IR sobre lucros no exterior que nem chegaram a ser distribuídos à empresa brasileira. O acordo com a Áustria tem cláusula semelhante. "Os acordos permitem adiar ou até evitar a tributação sobre os lucros", diz Carlos Romero, sócio da Ernst & Young. O tributarista Luiz Frederico Battendieri, do Braga & Marafon, lembra, porém, que a interpretação que as empresas dão ao acordo pode ser questionada pela fiscalização. Os litígios entre empresas e a Receita ainda não não conseguiram definir a validade e o alcance dos tratados. Uma das discussões mais importantes ainda deve ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se de uma remessa de juros que a Volvo do Brasil fez a uma filial de banco japonês pagando um IR de 12,5%, o percentual previsto no acordo internacional Brasil- Japão. A Receita Federal diz que a alíquota de IR devida seria maior, de 25%, porque os juros não foram remetidos diretamente ao Japão, mas a uma filial do Banco Itochu Corporation no Panamá, tradicional paraíso fiscal. Rosana Pollis, gerente da área jurídica da Volvo, diz que o acordo nipo-brasileiro e a legislação panamenha permitiram o pagamento da alíquota menor. Mesmo com discussões pendentes, o avanço das holdings e tradings européias é inegável. Há duas situações em que os países europeus estão sendo usados, diz Eduardo Fleury, tributarista do Monteiro, Neves e Fleury Advogados: uma em que o país serve como ponte para a empresa chegar ao paraíso fiscal e outra em que o próprio país é usado como "espécie de paraíso" por possuir uma tributação reduzida. "É o caso da Holanda que tem atraído multinacionais a instalarem suas sedes para a remessa de lucros e royalties." Em nota enviada ao Valor, a Gerdau diz que as empresas brasileiras tendem a estruturar os seus negócios internacionais utilizando holdings européias em razão do elevado número de acordos para evitar a bitributação da renda, ao contrário do Brasil. O uso dos acordos permite redução ou eliminação de "ineficiências tributárias", principalmente no que diz respeito a dividendos, juros e transferência de tecnologia. "Os países europeus passaram a oferecer benefícios interessantes, como tributação reduzida, com a intenção de esvaziar os tradicionais paraísos fiscais e ao mesmo tempo atrair investimentos", diz a advogada Ana Cláudia Utumi, do Tozzini, Freire, Teixeira e Silva. "Depois de 11 de setembro, o aperto aos paraísos fiscais ficou mais forte com a entrada dos Estados Unidos", diz ela, referindo-se ao ataque terrorista de 2001, que pôs abaixo as torres norte-americanas do World Trade Center. A bandeira européia e norte-americana é contra o sigilo bancário a todo custo e ao segredo garantido à composição societária. Os dois mecanismos facilitavam a montagem de empresas com recursos sem origem declarada. A pressão chegou a gerar uma divulgação anual do "paraísos fiscais não-cooperativos". O movimento surtiu efeitos. Cayman mudou a legislação, assim como Ilhas Virgens Britânicas e Aruba . Mesmo alterando a lei, locais como Aruba, ilha com imagem muito ligada à lavagem de dinheiro, tende a perder pontos para empresas brasileiras sérias preocupadas com a imagem, diz o tributarista Celso Grisi, consultor da Fox Horan & Camerini LLP. As holdings européias se encaixam perfeitamente nos chamados "paraísos fiscais modernos" porque exigem presença física, permitem enxergar os sócios ou seus reais beneficiários, têm limites para o sigilo bancário e concedem redução de tributação, mas não chegam a isentar os lucros. "Nos anos 90, muitas pessoas nem sabiam o que era paraíso fiscal, e quando conheciam usavam desses países para blindar patrimônio", diz o tributarista Solano de Camargo, do Dantas, Lee & Brock Advogados. Agora, os planejamentos tributários são operações cinematográficas. "As empresas estão evitando países com má-fama", diz. Procurada, a Receita Federal não comentou o tema.