Título: Diálogo com o presidente
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2006, Opinião, p. A14

Desde novembro de 2004, quando fui demitido ao qualificar a política monetário-financeira de pesadelo, não mais falei com o presidente Lula. Posso dialogar com o presidente a partir de suas declarações públicas. Em mensagem ao Congresso, em 2003, o presidente declarou: "O desenvolvimento com justiça social implica a ruptura (...) excessiva dependência externa e aguda concentração de renda que gera forte exclusão social (...) a dimensão social tem que ser o eixo do desenvolvimento". O secretário J. Levy afirmou: "O Brasil está virando onça". A metamorfose residiria nas contas externas brasileiras. O pífio crescimento tem-se apoiado nas exportações e no endividamento familiar (bancarização e desconto em folha). Crescem as vendas de veículos e eletrodomésticos. No varejo, os não duráveis praticamente não crescem. O país conseguiu a auto-suficiência em petróleo. É um erro converter a Petrobras em apenas uma petroleira. Petróleo não é commodity. É item estratégico. Não tem sentido ampliar a presença de outras petroleiras nos campos brasileiros. Ao invés de desenvolver uma forte siderurgia, o país, com a privatização, esfacelou a potencial Siderbrás. A CVRD, privatizada, quer se converter em uma mineradora mundial. O Brasil não pode abrir mão desta empresa para desenvolver a mineração no território nacional e instalar a logística de integração. O capital de brasileiros no exterior já atingia US$ 93 bilhões, dos quais US$ 54 bilhões intermediados por paraísos fiscais em 2004. Suspeito que uma parte expressiva destes bilhões retorna ao país como capital cigano de curto prazo para participar, com status de estrangeiro, de nosso banquete de juros reais. Em 2005, o governo pagou R$ 146 bilhões em juros de dívida pública e gastou R$ 8 bilhões com o Bolsa-Família. Pochman estima que 70% dos juros vão para 20 mil famílias, enquanto o Bolsa atende a 8,7 milhões. Nestes números está a mais brutal concentração de renda e riqueza da história brasileira. O presidente Lula merece aplausos pelo programa. Disse: "É um programa emergencial. Meu sonho é que, um dia, não precisemos mais do Bolsa, pois ele terá gerado emprego e ajudado na distribuição de renda". Emprego, presidente, é gerado pelo investimento produtivo. O público está hipercomprimido (0,5% do PIB) e o privado está inibido pelo alto juro e pelo torpor do mercado interno. Presidente, no seu triênio, a média de crescimento será de 2,58% do PIB. Pressionado, em entrevista à "The Economist", disse: "É hora de olhar apenas para o país (...) Não adianta comparar os indicadores da economia no Brasil com os do EUA e da China". Concordo: 58% dos chineses estão no campo e sua renda é três vezes menor que a urbana. O país precisa gerar 25 milhões de empregos urbanos por ano. Em 2005, só conseguiu 11 milhões. Uma fração dos 750 milhões de camponeses está indo para as cidades. Há problemas estruturais: não dispõe de petróleo e sua produção de alimentos está contida pelo desvio de água para as cidades e indústrias. A Índia ocupou uma posição estelar em Davos, mas o país tem 350 milhões de pessoas subsistindo com US$ 1 ou menos por dia. É hindu 40% da miséria do mundo. Também há problemas de energia e alimentos. Necessita de energia termonuclear e dispõe da bomba atômica. O sucesso hindu na indústria de defesa é acompanhado pela qualificação em informática, matemática e contabilidade de uma fração pequena de sua força de trabalho. Muito qualificada e barata, esta mão-de-obra faz da Índia uma exportadora de serviços de US$ 20 bilhões.

O Brasil é a quinta economia mais atrativa ao investimento direto estrangeiro, mas a China, com alto crescimento, atrai mais investimento produtivo

Presidente Lula, o senhor está certo: não é comparável nem desejável a situação estrutural chinesa e hindu. Temos água, sol e solo para produzir alimentos; não temos restrições energéticas estruturais. Já completamos nossa urbanização e estamos em amadurecimento demográfico. Com 2 milhões de novos empregos por ano resolveríamos nosso problema de inclusão social. Não precisamos nos inspirar na Índia e vender mão-de-obra brasileira barata. É inquietante já estarem 2 milhões de brasileiros no exterior. Presidente, não escute bobagens relativas ao Chile, Irlanda ou Suíça. Toda a economia do Chile é menor do que a do Estado do Rio de Janeiro. Somos um país continental. Segundo o IIF, o Brasil é o emergente com a melhor estrutura de relações com aplicadores estrangeiros e transparência nas informações sobre contas públicas. China e Rússia, dois dos piores, têm sido recompensados com imensos fluxos de capital. A explicação é simples: esses países têm altas taxas de crescimento. O investimento externo não dinamiza um país continental. A lição chinesa é útil: não atrai aplicadores de portfólio. Segundo a Unctad, o Brasil é a quinta economia mais atrativa para o investimento direto estrangeiro, porém a China atrai US$ 55 bilhões para o investimento produtivo, enquanto o Brasil computa US$ 18 bilhões em qualquer tipo de aplicação, até mesmo a troca do controle da AmBev pelas ações da Interbrew. Não confunda aplicação financeira com investimento produtivo. Não festeje os aplicadores estrangeiros serem responsáveis por 35,1% das operações de compra e venda de ações na Bovespa. Em 2005, nossas remessas de lucros e dividendos cresceram 73%. Das 500 maiores empresas dos EUA, 440 estão no Brasil. Várias empresas européias aqui estão desde o início do século XX. A revista "Fortune" ouviu 203 grandes empresas americanas. Prognosticam que o Brasil crescerá apenas entre 1,5% e 3,5% em 2006, explicação para a explosão de remessas de suas filiais. As matrizes devem usar dividendos do Brasil para investir em países dinâmicos. Presidente, escute o que diz Klaus Meves, da Hamburg Süd. Muitos de seus clientes ameaçam deixar de exportar ou transferir sua produção do Brasil para a China em função da apreciação do real frente ao dólar. Escute, presidente, empresários e trabalhadores da indústria de calçados em Franca (SP) e Novo Hamburgo (RS). A nossa indústria está sendo destruída pelo sapato feito na China. Empresas chinesas estão contratando técnicos brasileiros qualificados desse setor, desempregados. A ironia, presidente, é que nosso couro é exportado em massa, inclusive para Hong Kong. No futuro, o pé do brasileiro calçará um sapato de couro e tecnologia nacional feito na China e importado pelas redes Cassino, Carrefour e Wal-Mart. Presidente, o senhor disse que "o governo não precisa saber tudo, não precisa compreender tudo. O governo tem apenas de ter a sensibilidade para deixar que as pessoas digam ao país o que é melhor para o próprio país, é o que acontece". João Felício, presidente da CUT, disse que "a combinação juros altos, elevado déficit fiscal, câmbio flutuante determinado pelo mercado resultou em baixo crescimento". Paulo Skaf, presidente da Fiesp, afirmou que "a teimosia do governo em manter altas as taxas de juros (...) impediu o Brasil de crescer (...) Estamos lado a lado com o Haiti, solidários até no medíocre crescimento". Presidente, escute o que dizem trabalho e capital produtivo. Não diga: "não estamos preocupados em fazer a economia decolar imediatamente".