Título: Todos choram e todos querem ter razão na crise das "papeleiras"
Autor: Paulo Braga De Gualeguaychu e Fray Bentos
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2006, Especial, p. A16

Fronteira fechada Obra de US$ 1,7 bi opõe Uruguai e Argentina e ameaça o Mercosul

O que à primeira vista parecia ser apenas uma "briga de vizinhos" entre Uruguai e Argentina em torno da instalação de duas fábricas de celulose no lado uruguaio da fronteira se converteu no problema mais grave vivido atualmente no Mercosul. O temor de poluição fez a população do lado argentino se mobilizar e bloquear a fronteira, sob o slogan "não às papeleiras". A crise coloca à prova a capacidade do bloco de resolver seus problemas internos. Os projetos, da finlandesa Botnia e da espanhola Ence, representam um investimento total de US$ 1,7 bilhão e estão sendo levados a cabo apesar da oposição da Argentina. Para o governo argentino, Montevidéu não respeitou um tratado firmado entre os dois países que prevê consultas à outra parte antes da realização de qualquer obra que afete o rio Uruguai. Segundo o Valor apurou, o problema já está atrapalhando os trabalhos do Mercosul, com o cancelamento de algumas reuniões devido à negativa uruguaia em participar. A presidência pró-tempore do bloco é atualmente ocupada pela Argentina. O conflito se agravou há 40 dias, quando grupos de moradores das cidades de Gualeguaychu e Colón, do lado argentino, bloquearam o trânsito em duas das três pontes que ligam a província argentina de Entre Rios ao território uruguaio, sem que houvesse interferência das autoridades. Os bloqueios afetaram o fluxo de turistas argentinos para as praias uruguaias no auge da temporada de verão, e estima-se que o prejuízo uruguaio já ultrapassa US$ 200 milhões. Os ativistas não descartam outros bloqueios que poderiam prejudicar o trânsito de produtos brasileiros à Argentina, ampliando o alcance da crise. "Se nos tirarem à força daqui, vamos para a estrada 14 e pronto", ameaça o técnico de informática Gustavo Graña, um dos moradores de Gualeguaychu que participa do protesto. A estrada 14 fica a 28 km do bloqueio e é conhecida como rodovia do Mercosul, pois liga o sul brasileiro a Buenos Aires. No sábado, os presidentes do Uruguai, Tabaré Vázquez, e da Argentina, Néstor Kirchner, anunciaram um acordo que prevê a interrupção das obras por até 90 dias e o fim dos bloqueios, mas anteontem os moradores do lado argentino ainda se recusaram a levantar o bloqueio (leia texto abaixo). Muitos manifestantes sustentam que a única solução é abandonar a construção das fábricas, mas com o estágio atual das obras a reivindicação parece quase impossível de ser atendida. Estão trabalhando no terreno da Botnia 1.400 pessoas, e a previsão da empresa é que a fábrica esteja funcionando no segundo semestre de 2007. A estrutura da chaminé da fábrica, de 120 metros de altura, já está quase pronta e é uma visão incômoda para os habitantes da margem argentina. "Os primeiros afetados vão ser os produtores de mel, e depois nossa carne e nossos grãos também serão discriminados", disse o agricultor Alfredo de Angeli. De Angeli integra o grupo de moradores que ganhou projeção nacional depois que mais de 30 mil pessoas se reuniram num protesto contra a construção das fábricas, em abril de 2005. Os ânimos se exaltaram, e a pressão popular fez com que o tema se convertesse em um componente das eleições parlamentares argentinas, realizadas no final do ano passado. O governo federal respaldou a posição dos moradores e posteriormente tolerou o bloqueio das pontes, sob protesto do Uruguai. O argumento do governo argentino é que o Uruguai violou o Estatuto do rio Uruguai, assinado em 1975. O acordo prevê que qualquer projeto relacionado ao rio e que possa afetar o meio ambiente tem de ser discutido entre os dois países. Já o governo uruguaio alega que cumpriu todas as etapas legais e certificou-se de que as fábricas usarão a melhor tecnologia para a fabricação da celulose. Diz ainda que em 2004 o então chanceler argentino, Rafael Bielsa, deu aval à instalação das fábricas após encontro com autoridades uruguaias, o que a Argentina nega. Enquanto o governo argentino ameaça levar o caso à corte internacional de Haia, o Uruguai quer que as diferenças sejam resolvidas no âmbito do Mercosul, já que o bloqueio das pontes viola a uma das bases do bloco, a livre circulação de mercadorias e pessoas. Argentinos tomam sol em meio ao bloqueio de uma ponte em Gualeguaychu, na fronteira com o Uruguai; moradores da cidade se revezam no protesto A posição da população de Gualeguaychu é de "não às papeleiras" (como as empresas são chamadas). Os dizeres são exibidos em quase todos estabelecimentos comerciais da cidade, em adesivos, faixas e murais. A organização ambientalista Greenpeace propõe uma solução intermediária. Entre as propostas do grupo, está a limitação da capacidade de produção das fábricas a 700 mil toneladas anuais (a maior, da Botnia, pretende produzir 1 milhão), o uso de tecnologia totalmente livre de cloro e a realocação de pelo menos uma das unidades, para que não haja um efeito ambiental acumulado. "Essa polêmica chegou tarde. O governo argentino não atuou com energia suficiente no princípio e tinha a expectativa de que o processo seria revisto pelo governo de Tabaré Vázquez", avaliou Juan Villalonga, do Greenpeace argentino. Para os moradores de Gualeguaychu, cidade de 80 mil habitantes, o bloqueio foi a única forma de trazer a questão para o debate nacional. "É triste que tenhamos que fazer um bloqueio ilegal para que nos escutem, mas quem começou com a ilegalidade foram eles", afirmou o secretário de Turismo municipal, Sebastian Bel. Para ele, o turismo local, que explora a pesca, estações de águas termais e tem como principal atração o Carnaval, com desfiles no "sambódromo" local, deve ser o setor mais afetado pelas fábricas. "Uma família não vai querer passar as férias aqui se o ar tiver cheiro podre e a água estiver contaminada", afirmou. Os argumentos mudam totalmente na outra margem do rio. A título de comparação, o investimento nos dois projetos supera 10% do PIB do Uruguai. Na cidade uruguaia de Fray Bentos, de 30 mil habitantes, a construção das fábricas é vista como uma oportunidade de transformar em realidade os dizeres do brasão do departamento (Estado) de Rio Negro: "Somos Indústria e Riqueza". Em contraste com a vizinha Gualeguaychu, que possui um parque industrial onde estão presentes a Unilever e a fábrica de sucos Baggio, em Fray Bentos há muito tempo não existe mais indústria. O frigorífico Anglo, que chegou a ser um dos maiores do mundo e foi grande fornecedor de carne enlatada para a Europa do pós-guerra, fechou as portas em 1979. A cidade, que vive do turismo e da agricultura, vê na instalação das fábricas uma possibilidade de desenvolvimento econômico, que já começa a ser sentido. "A Argentina tem várias fábricas de celulose que contaminam e reclama porque vamos colocar duas aqui", queixa-se Ramiro Figur. Ele diz que confia nas garantias dadas pelo governo uruguaio e pelas empresas de que o nível de poluição gerado pelas fábricas não afetará o meio ambiente local. Figur vende areia para construção e, nos últimos meses, tem visto seu negócio prosperar com a edificação de casas que vão alojar os futuros empregados das fábricas de celulose. "A situação melhorou para toda a população de Fray Bentos", disse. "Não existe poluição zero, mas estamos absolutamente seguros de que a quantidade de resíduos que serão produzidos pelas fábricas ficará abaixo dos parâmetros internacionais mais exigentes", afirma o prefeito de Fray Bentos, Omar Lafluf. E aproveita para alfinetar a Argentina. Diz que o Uruguai foi escolhido para o investimento porque oferece às empresas "segurança jurídica, institucional e econômica". Só não diz explicitamente o que se ouve entre a população de Fray Bentos: que estas qualidades não existem na Argentina e que a reação em Gualeguaychu teria sido muito diferente se o destino das fábricas de celulose tivesse sido a outra margem do rio.