Título: Ponderações sobre as normas da CVM
Autor: Plinio J. Marafon
Fonte: Valor Econômico, 15/03/2006, Legislação & Tributos, p. E2

"É ilegal o entendimento de que um tributo questionado judicialmente continua sendo uma obrigação"

Desde a Deliberação CVM nº 489/05, que aprovou a NPC nº 22 do Ibracon, surgiram inúmeros questionamentos a posições radicais dessas entidades, especialmente sobre os passivos tributários e suas recuperações. Nosso objetivo é abordar alguns enfoques que estão sendo relevados a segundo plano, mas que têm conseqüências importantes para as empresas e que parecem ter sido ignorados por essas entidades. Primeiramente, para quem deseja se opor judicialmente a esses atos normativos, queremos ponderar que o entendimento oficial de que um tributo exigido por lei e questionado judicialmente - com liminar ou depósito - continua sendo uma obrigação é ilegal. Isso porque a suspensão da exigibilidade do crédito tributário pelo artigo 151 do CTN tem o poder de transformar uma obrigação em simples provisão. Se o credor não pode cobrar o crédito, porque está suspenso, não há passivo a pagar. Ainda que a CVM tenha autorização legal para editar atos normativos sobre contabilidade, está subordinada ao direito, especialmente a uma norma de hierarquia superior, que é o CTN. E para comprovar a incoerência da CVM/Ibracon, quando um auto de infração é contestado também há uma suspensão da exigibilidade do crédito tributário, mas nesse caso não há obrigação, mas simples provisão. Qual a diferença, se ambas as cobranças derivam da lei? E como considerar obrigação um tributo cobrado retroativamente, como foi a CSLL ainda em 1988? Em segundo lugar, a distinção entre aqueles que têm processos transitados em julgado e aqueles que não o têm ou nem mesmo contestaram a cobrança é inconstitucional, por ser não-isonômica. Quando o Plenário do STF decide que determinado tributo é inconstitucional, ainda que num processo específico de um contribuinte, tem a força de irradiar efeitos para todos os demais, já que essa decisão é enviada ao Senado Federal para que esse suspenda tal lei. Ou seja, o STF está mandando dizer que quer dar a esse julgamento um efeito nacional, dentro dos limites da sua jurisdição, porque a independência dos poderes o impede de, unilateralmente, suspender a lei que ele considerou inconstitucional. Mas se apegar a esse detalhe formal não justifica a criação de uma situação absurda de haver, simultaneamente, contribuintes que tiveram processos transitados em julgado, porque andaram mais rapidamente, e que poderão reverter suas provisões (ou ativar seus créditos a restituir), e contribuintes que tiveram incidentes processuais que atrasaram seus litígios, mas serão certamente beneficiados pelo sucesso da tese, e ainda outros que nem quiseram discutir, mas também terão o direito à recuperação do que foi pago indevidamente. Em relação a todos há uma situação igual: o STF decidiu que o tributo é inconstitucional. A iniqüidade dessa posição leva ao absurdo de um mesmo grupo empresarial ter empresas com processos findos, e provisões revertidas, e outras que ainda pendem de solução judicial, e não poderão revertê-las, ou nem reconhecer os ativos. Como os auditores deverão opinar sobre as demonstrações em conjunto, como pode haver dois critérios para um mesmo fato: tributo considerado inconstitucional?

Ainda que a CVM tenha autorização legal para editar atos normativos sobre contabilidade, está subordinada ao direito

Aliás, os auditores também terão sérios problemas para resolver uma questão relativa à comparabilidade e competência: se nos anos anteriores o processo não mereceu uma provisão, ou esta foi revertida por influência da opinião dos advogados, sob as normas contábeis anteriores mais flexíveis, como exigir agora uma provisão abrangendo os períodos anteriores? Mas os problemas não param aí. Mesmo sem entrar no mérito da razoabilidade de se tomar o que deveria ser "praticamente certo" como algo absoluto, na medida em que CVM/Ibracon impõem que as empresas esgotem os processos para poderem registrar contabilmente seus efeitos benéficos, acabam obrigando que todas elas entrem com processos, atolando ainda mais o Judiciário. Imaginem como será se todas as empresas que sejam auditadas devam propor ações para todos os tributos que julguem indevidos, sabendo que ainda há inúmeras questões fiscais controvertidas. Quando o próprio governo se esforça para simplificar os ritos processuais, visando agilizar a Justiça, vem outro órgão do próprio governo e incita os contribuintes a questionarem tudo, sob pena de algum caso isolado chegar mais rápido às instâncias superiores e formar jurisprudência favorável, que não poderá ser aproveitada por aqueles que estão "na fila" do Judiciário, ou preferiram esperar o resultado daqueles que se anteciparam. Ninguém mais poderá ser conservador em matéria fiscal, todos terão que ser agressivos; aliás, o administrador que não agir assim poderá ser questionado pelos acionistas, por não estar defendendo convenientemente os seus interesses (basta imaginar uma hipótese em que o concorrente começou a discutir uma tese fiscal...). Compreendemos que o intuito subjacente das normas da CVM/Ibracon foi tentar evitar registros contábeis pouco conservadores, relativamente a teses judiciais que pareciam estar resolvidas, mas foram posteriormente revertidas em favor do fisco. Mas a emenda ficou pior que o soneto... Não é porque houve algumas reviravoltas isoladas do Judiciário (crédito-prêmio de IPI e crédito de IPI de matérias primas com 0%) é que todo o sistema está comprometido. Afinal, desde que os contribuintes conquistaram a sua cidadania tributária, que começou maciçamente na contestação do DL 2323/87, houve muitos questionamentos tributários bem sucedidos nestes quase 20 anos e pouquíssimos casos em que a Judiciário vacilou ao firmar uma jurisprudência estável. Essas exceções não deveriam justificar uma reviravolta abrupta nas regras anteriores, mais adequadas ao contencioso tributário, gerando os problemas acima citados. Por último, um pedido ao Judiciário: por favor, estabilizem a jurisprudência mais rapidamente e de forma estável. Fica difícil explicar às empresas como uma decisão plenária do STF de dezembro de 2002, que deu por válido o crédito do IPI nos insumos de 0%, por nove votos a um, e que repercutiu imediatamente nos balanços, pode ser posteriormente modificada pela mesma corte. Ou como decisões do STJ que ressuscitam o crédito-prêmio de IPI nas exportações são modificadas pela 1ª Seção, por uma apertada e insegura maioria de cinco votos a três; ou ainda a já célebre polêmica sobre a Cofins das sociedades de serviços profissionais. Decisões empresariais necessitam de segurança. Nos dias atuais, com a dinâmica do mundo econômico, é melhor ter julgados definitivos rápidos, e talvez com pouco aprofundamento, do que uma jurisprudência vacilante.