Título: Crimes sem castigo
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 16/03/2006, Brasil, p. A2

A incoerência inesperada e surpreendente de Woody Allen sempre divertiu os amantes do cinema. "Não quero ser imortal através de minha obra; prefiro não morrer", dizia ele. Ou: "Amar é sofrer. Para não sofrer, não ame. Mas ser feliz é amar. Portanto ser feliz é sofrer. Mas sofrer me faz infeliz. Portanto"... A falta de sentido é a idéia que alicerça o humor de Allen e que ele agora transforma em cinismo pós-moderno no filme "Ponto Final". Dois arrivistas, Chris e Nola, pretendem usar o apelo do sexo para conseguir um rico casamento numa mesma família. Chris tem sorte: Chloe pede ao paizinho que lhe compre o namorado e eles se casam. Mas Chris se envolve com Nola - que perdera o bilhete premiado (o irmão de Chloe). Ao sentir-se pressionado, Chris mata Nola. Numa cena inicial, Chris aparece lendo "Crime e Castigo", de de Dostoievski. Assim, Woody Allen sugere ao espectador que compare o filme ao livro. Vamos lá. No livro, Raskolnikov mata duas mulheres (a dona do penhor e sua meia-irmã) e leva as jóias da velha. No filme, Chris também mata duas mulheres, Nola e a vizinha, e leva as jóias da coroa. Raskolnikov mata para descobrir se é Napoleão. O desejo realizado é incompatível com seu masoquismo e expõe sua consciência dividida entre o desejo e a culpa. Só tarde demais entende o que fizera: "Eu tinha obrigação de saber que o verdadeiro dominador, a quem tudo é permitido, que bombardeia Toulon, massacra Paris, esquece um exército no Egito, perde meio milhão de homens na batalha de Moscou e a quem depois de morto levantam estátuas, não é feito de carne, mas de bronze". O herói de Dostoievski queria provar que o ser superior pode matar sem culpa, mas acaba consumido por ela. Ao contrário dele, o Chris de Woody Allen não passa de um assassino ocasional, que mata porque lhe convém livrar-se da amante grávida. Mas desconhece a culpa, pois é um neobandido à moda dos nossos deputados. Em "Crime e Castigo", Raskolnikov enterra as jóias que levara da velha. Em "Ponto Final", Chris as atira no rio, mas uma aliança cai na calçada. No livro como no filme, o delegado tem certeza que o anti-herói cometeu o crime, embora não tenha provas. Talvez a idéia de Woody Allen fosse virar o livro de cabeça para baixo. Na obra de Dostoievski, a polícia prende um inocente no lugar de Raskolnikov. O sentimento de culpa do herói cresce e acaba por condená-lo. Mas no filme, a polícia encontra a aliança roubada com um viciado em drogas que já estava morto. Chris está livre, não só da cadeia como da culpa. Ter sorte é melhor do que ser bom, segundo o diretor. Mas a comparação com a melhor história de crime da literatura mundial desfavorece o filme. Ao contrário das caricaturas de "Ponto Final", não apenas Raskolnikov, mas todos os outros personagens de "Crime e Castigo" têm uma presença inesquecível. Sônia, em oposição a Nola, é a figura clássica da prostituta-santa, que se sacrifica para alimentar os irmãos e se dedica ao herói. E em contraste com o delegado apagado do filme de Allen, o brilhante delegado de Dostoievski tortura Raskolnikov com requintado sadismo.

Não foi sorte o que ajudou os deputados do "mensalão"

Por fim, em contraposição com a doutrina do mau caráter ocasional de "Ponto Final", o homem mau em "Crime e Castigo" é Svidrigailov, uma figura comparável ao Iago, de Shakespeare. A descrença e o cinismo de Woody Allen são pequenos diante do niilismo desse personagem tremendo. A liberdade de Svidrigailov, que escolhe o suicídio, é aterradora e oposta à falsa liberdade do neobandido, cujo destino é selado pelo acaso. Woody Allen não é Dostoievski, mas o cinismo de sua fábula amoral se encaixa bem nos dias que correm. Ainda assim, mesmo quem reconhece as muitas caras da impunidade, não diria que foi a sorte que livrou da cadeia os mandantes do assassinato do ex-prefeito de Santo André. Nem foi a sorte que inocentou os deputados envolvidos no "mensalão", mas o conluio de interesses bem definidos. Violência, corrupção e cinismo sempre fizeram parte da política. Mas o aplauso do cinismo é pós-moderno. Se fosse vivo, Dostoievski escreveria um romance de arromba sobre sua escalada na Rússia. Uma pesquisa recente perguntou aos russos qual a profissão que abriga o maior número de corruptos. As respostas revelaram que 40% deles consideram que a polícia é a profissão mais corrupta do país, e 20% que os bandidos estão, sobretudo, entre os políticos e servidores públicos. Apenas 12% acreditam que ladrões e traficantes representam a maioria dos criminosos. Por isso os donos da ordem amedrontam os russos mais do que assaltantes e drogados. Será que o Brasil vai na mesma direção? O Banco Mundial diz que identificou a corrupção como o maior obstáculo ao desenvolvimento e tem uma receita para seu combate. O primeiro passo consiste em punir políticos e servidores públicos culpados, o que exige partidos políticos em aberta competição, regras claras para o financiamento de campanhas eleitorais e transparência da contabilidade dos partidos. Nada fácil, quando os próprios políticos criam as regras e o eleitorado se deixa enganar. A receita do Banco Mundial também requer a participação da sociedade civil na vida do país com o fortalecimento de organizações não-governamentais, institutos de pesquisa e imprensa livre. A promoção de instituições que restrinjam o exercício do poder, como um Judiciário independente e eficaz. A melhoria da administração pública, com um sistema meritocrático para contratação e promoção dos servidores públicos, o respeito a orçamentos transparentes e descentralização com prestação de contas. A lista é longa. Mas enquanto seus componentes não estiverem em bom funcionamento, neobandidos e políticos corruptos não precisam ter a sorte de Chris em "Ponto Final" para continuar fora da cadeia e matar a confiança na política.