Título: Reforma econômica na Europa
Autor: Wolgang Munchau
Fonte: Valor Econômico, 16/03/2006, Opinião, p. A13

Mudanças no "welfare" podem ter causado a recente intensificação do protecionismo

Todos os nossos preconceitos sobre a economia da velha Europa foram confirmados nas últimas duas semanas. A oposição de governos nacionais a "takeovers" alastrou-se rapidamente pela União Européia (UE), de Luxemburgo à Espanha e, depois, à França. Em diversos países da UE, políticos experientes trouxeram à tona o espectro do patriotismo econômico, aparentemente cegos ao mercado comum europeu no qual eles anteriormente investiram tanto capital político. Mas há outra história, menos destacada na mídia, que não se coaduna com essa narrativa. Na semana passada, a grande coalizão de governo da Alemanha afirmou ter efetivamente solucionado o problema das aposentadorias, depois de decidir elevar de 65 para 67 anos o limite da idade economicamente ativa. Quando são considerados o congelamento dos pagamentos nominais de aposentadorias e a adoção de um esquema privado de primeira linha, a afirmação é crível. É também uma realização importante, tendo em vista que poucos anos atrás o sistema de aposentadorias parecia destinado ao colapso. Outros governos em toda a zona do euro também vêm reformulando vigorosamente seus modelos sociais. O Estado de bem-estar social "do berço ao túmulo" deixou de existir. Essas duas narrativas não são tão independentes quanto parecem à primeira vista. Na realidade, as reformas no "welfare" podem ter causado a recente intensificação do protecionismo. Como reformas, elas tiveram êxito. Taparam os buracos financeiros no sistema de seguridade social e reduziram abusos na utilização do sistema de "welfare". Mas foram desequilibradas. As reformas afetaram o sistema social, mas não a economia como um todo. Num livro publicado na Alemanha na semana passada ("Das Ende der Sozialen Marktwirtschaft", Hanser-Verlag, 2006), argumento que o governo alemão deveria ter se concentrado em reformas do sistema corporativista - a denominada economia social de mercado - e não em reformas sociais. Praticamente toda essa análise pode ser aplicada com apenas mínimas modificações à França, Itália e vários outros países da UE. O termo economia social de mercado é um nome enganoso. O que ele designa não é uma economia social nem de mercado, mas sim um sistema que protege privilegiados de desprivilegiados mediante diversos mecanismos institucionais, como cartéis negociadores de salários, bancos estatais, participações acionárias cruzadas, artifícios para impedir "takeovers" e "co-determinação" (participação de empregados e empregadores nos conselhos fiscais). Esse sistema, bastante apropriado a uma economia industrial de pós-guerra, não é adequado à era de globalização. Reformas no "welfare" agravaram o problema dos "privilegiados versus desprivilegiados" inerente à economia social de mercado, ao tornar a proteção mais valiosa para aqueles que dela desfrutam. As reformas Hartz IV, adotadas pelo governo anterior, reduziram substancialmente o direito ao "welfare". Pessoas solteiras desempregadas, por exemplo, agora recebem não mais do que míseros 345 euros (US$ 409) por mês.

Se um Estado de bem-estar social é reformado, mas os privilegiados têm permissão para assegurar seus interesses, nada estará sendo solucionado

Em um país com um mercado desregulamentado de bens e de trabalho, um programa de reforma do "welfare" bem concebido teria um efeito positivo sobre a geração de empregos e o empreendedorismo, incentivando o desempregado de longo prazo a conseguir um trabalho ou assumir riscos. Na economia social de mercado, reformas draconianas no "welfare" que não sejam acompanhadas por liberalização de mercado têm efeito contrário. Elas simplesmente incentivam os privilegiados a defenderem suas esferas de interesse ainda mais obstinadamente. Isso explica em parte porque, desde a ampliação da UE, os partidos políticos alemães à esquerda e à direita insistiram em manter seus mercados de trabalho fechados a novos membros da UE durante todo o sétimo ano do período de transição. É também por isso que a Alemanha e outros países ocidentais europeus tornaram-se cada vez mais hostís à idéia de um mercado de serviços europeu liberalizado. A reforma nos sistemas de "welfare" e de aposentadorias, em especial, teve um efeito macroeconômico indesejável. Nos últimos anos, as quedas da renda melhoraram a competitividade relativa da Alemanha na zona do euro. Teria sido de esperar que os sindicatos tivessem impedido uma espiral salarial deflacionária - o que teria sido um bom efeito colateral da economia social de mercado - mas, em vez disso, eles entraram em conluio com associações patronais para manter os salários baixos em troca de algumas garantias de emprego. Por que fizeram isso é uma pergunta interessante. Suspeito que os membros dos sindicatos atribuíram um valor tão exorbitante à segurança no emprego que mostraram-se dispostos a aceitar cortes salariais. Um alto assessor econômico do governo alemão disse-me acreditar que a deflação salarial real persistirá por muitos anos, a despeito de uma recuperação da economia. A queda no valor das aposentadorias é ainda mais drástica do que a queda nos salários. Dez anos atrás, o governo alemão projetou que as aposentadorias médias seriam de 1.510 euros neste ano. A atual aposentadoria média é de apenas 1.184 euros, ou cerca de 22% abaixo do previsto. O que estamos testemunhando é uma espiral deflacionária a corda toda, com salários e aposentadorias em queda real. O governo alemão, portanto, solucionou o problema das aposentadorias convertendo-o num problema de deflação. Assim, essa é a desalentadora narrativa por trás da reforma econômica na Europa. Se você reforma um Estado de bem-estar social durante o período de declínio nos salários reais, mas permite que privilegiados assegurem seus interesses às custas dos excluídos, não estará solucionando quaisquer problemas. Não deve causar surpresa o fato de que protecionismo pode florescer em tal ambiente macroeconômico.