Título: Tecnocracia confunde política e clientelismo
Autor: Maria Cristina Fernandes
Fonte: Valor Econômico, 17/03/2006, Política, p. A8

Em junho de 1994, Fernando Henrique Cardoso tinha 19% das intenções de voto, e Luiz Inácio Lula da Silva, 41%. Na pesquisa CNI/Ibope divulgada quarta-feira, o governador Geraldo Alckmin pontuou em sua primeira semana como candidato os mesmos 19% face a 43% de Lula. Não faltam diferenças entre as duas situações, a começar pelo lançamento do Plano Real que levou FHC a virar o jogo em menos de dois meses naquela campanha. Elegeu-se como candidato de um governo que conduzia um bem sucedido plano de estabilização. Alckmin é o adversário de uma gestão que recupera generosos indicadores e executa boa fatia do ideário tucano. O fosso entre os dois momentos eleitorais é quase tão grande quanto aquele que separa o perfil do governador Geraldo Alckmin do estilo de fazer política que une o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o prefeito José Serra. A intenção deve ser a de ofender, mas a comparação que a ala tucana derrotada faz entre a candidatura Alckmin e as de Orestes Quércia, em 1986, e de Paulo Maluf, em 1978, é, paradoxalmente, uma elegia à carreira do candidato tucano. Vice-governador de São Paulo em 1986, Orestes Quércia tinha um gabinete acanhado no Palácio dos Bandeirantes. Longe dele, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas e José Serra articulavam a sucessão do governador Franco Montoro. Mas foi Quércia quem, na costura com os diretórios regionais do partido, acabou emparedando a cúpula e levando a candidatura na convenção. O ano eleitoral já estava em curso. Aos três, restou o Congresso - FHC e Covas no Senado e Serra, na Câmara. Dois anos depois, sairiam do PMDB para fundar o PSDB. Em 1978, Paulo Maluf, que já havia fracassado uma vez na tentativa de ser indicado ao governo de São Paulo, tinha poucas chances de ser o escolhido do general Ernesto Geisel. Visitou todos os 1.261 delegados que iriam votar na convenção da Arena. Geisel escolheu Laudo Natel que, confiante, nem procurou os delegados. Na convenção, Maluf cumprimentava os arenistas pelo nome. Venceu por 617 votos a 589 e chegou ao governo do Estado de São Paulo. Pela coleção de escândalos acumulados na biografia de ambos os personagens, a comparação serve aos propósitos de retratar Alckmin, no mínimo, como o candidato do clientelismo. Cortejar diretórios regionais, visitar prefeitos, reunir vereadores e congregar governadores são práticas que, no PSDB, mais do que em qualquer outro partido, têm conotação de tarefa menor.

PSDB precisa casar projeto de poder com política

O PSDB chegou ao poder em 1994 nas asas de um plano de estabilização e graças ao Real firmou sua imagem como um partido que tem projeto de país. Fernando Henrique Cardoso e José Serra devem somar mais horas de leitura do que todos os 195 prefeitos eleitos pelo partido em São Paulo. Não se conhece uma única idéia de Alckmin sobre a política externa brasileira, o que não deve ser motivo de orgulho para qualquer candidato. Mas ao se viabilizar pelas bases locais do partido, Alckmin sedimenta no PSDB a prática do "barro amassado" que, nas grandes vitórias eleitorais do partido, teve no PFL sua ponta de lança. As razões por que os pefelistas tanto resistiram à sua candidatura devem ser buscadas à precedência dada por Alckmin aos governadores tucanos no desenho das alianças regionais. O país tem carências gigantescas e o federalismo brasileiro está organizado de maneira que prefeitos, vereadores, deputados estaduais e federais sejam os portadores dessas demandas locais. É assim em qualquer lugar onde se pretenda construir uma democracia. Como o país é pobre, as demandas são básicas. Se há um grande número de porta-vozes dessas demandas que agem em benefício próprio, é missão da política enxergar o bem comum no jogo de interesses que a cerca. Governante algum trará futuro ao país limitando-se a atender às demandas locais, mas não há como enraizar um partido se sua tecnocracia vê clientelismo em qualquer roda de vereadores que se reúna. Ou pior, se acha que é capaz de terceirizar o alinhavo do quadro de alianças locais à outra legenda antes mesmo de ver resolvida a candidatura própria do partido. Mais desastrado do que o processo de escolha do candidato, foi o formato de seu anúncio, com a injustificada ausência de José Serra, que agiu como o garoto que desiste de jogar porque não foi escolhido para ser o capitão do time. Se Serra é hoje reconhecidamente o tucano com o projeto mais claro de país, seu partido só teria a ganhar se o prefeito ajudasse a tirar Alckmin das graças do economista Gustavo Franco e influenciasse na elaboração do seu programa de governo. E se, além disso, entrasse na disputa ao governo do Estado, daria uma demonstração de que o PSDB, 20 anos depois daquela rasteira de Quércia, está se transformando, finalmente, num partido.