Título: Tapando o sol com a peneira
Autor: Claudio Haddad
Fonte: Valor Econômico, 17/03/2006, Opinião, p. A13

Um colunista que trata repetidas vezes do mesmo tema corre o grave risco de cansar o leitor. No entanto, após o artigo de Carlos Kawall, "Subsidiando o debate" (Valor, 13/03/06), vale a pena correr este risco. O artigo de Kawall é muito oportuno, pois explicita claramente a posição do BNDES sobre a existência de subsídio em suas operações de crédito a TJLP, que é por ele negada, assim como a visão do banco sobre seu papel na formação de capital no Brasil. Como ele menciona, este colunista já tinha tido a oportunidade, em gentil convite feito no ano passado, de debater este mesmo tema na sede do BNDES. Dada a importância do tema, pois afinal estamos falando de algumas dezenas de bilhões de reais em financiamentos, é salutar dar seqüência ao debate. O ponto fundamental do artigo de Kawall é que, como o BNDES não recebe aportes do Tesouro Nacional para a maior parte de suas aplicações de crédito e, como as taxas de juros reais destas aplicações são positivas, não há sentido em se falar em subsídio. Este argumento atropela a lógica. O BNDES é uma subsidiária integral do Tesouro Nacional. Caso construíssemos um balanço consolidado deste último, as operações do BNDES seriam parte integrante do mesmo. Neste balanço teríamos no passivo a dívida pública, em suas diversas modalidades de prazos e taxas, e os recursos especiais, principalmente provenientes do FAT, canalizados ao BNDES. Como estes são limitados, o custo marginal de captação do Tesouro é a taxa pela qual ele coloca sua dívida pública em mercado. Esta taxa pode ser a Selic, a dos títulos indexados à inflação ou a correção cambial. Tanto faz usar uma ou outra, pois em qualquer instante de tempo o mercado arbitra ficando, em equilíbrio, indiferente entre elas. Dado que o custo marginal do Tesouro é sua taxa de captação na dívida pública, qualquer empréstimo abaixo desta taxa representará uma perda para o Tesouro. Para cada real captado de recursos do FAT, a melhor opção para o Tesouro é: ou o BNDES repassá-los através de compra de títulos da dívida pública ou emprestá-los a taxas no mínimo iguais aos de captação do Tesouro, transferindo-lhe os lucros assim obtidos nas operações de crédito através de dividendos. Ao emprestá-los a TJLP, o BNDES gera perdas ao Tesouro Nacional (leia-se contribuinte) em relação a estas melhores alternativas, perdas estas cuja contrapartida são transferências ao setor privado. Se isto não é subsídio, o que é? Na realidade o argumento de Kawall é uma nova versão do utilizado pelo Banco do Brasil nos anos 70 e 80 para negar a existência de subsídio em suas operações de crédito, feitas a taxas bem inferiores às de mercado com recursos provenientes da conta de movimento junto ao Banco Central, obtidos a custo zero. Na época o argumento foi sepultado com o encerramento da conta movimento. O ponto básico é que operações fiscais podem ser feitas "acima da linha", com recursos orçamentários, ou "abaixo da linha", através de outras entidades públicas, como o BNDES. E que, em ambos os casos, o importante não é a origem dos recursos, mas sim seu custo de oportunidade. Já o fato de a TJLP ser ou não positiva em termos reais é irrelevante à análise. O que caracteriza o subsídio é ela ser inferior à taxa de captação do Tesouro.

Dado que o custo marginal do Tesouro é sua taxa de captação na dívida pública, qualquer empréstimo do BNDES abaixo desta taxa representará perda

Não há nada de errado, em princípio, com o subsídio. Caso esta seja a vontade da sociedade, expressa em decisão de seus governantes legitimamente eleitos, que seja acatada. Mas, embora não constem do orçamento propriamente dito, deveria ser dado às operações de crédito subsidiadas a mesma transparência e o mesmo tratamento que são dados aos demais gastos públicos. Portanto, as regras normais de sigilo bancário não deveriam se aplicar às operações do BNDES. Este banco deve à sociedade um grau de transparência muito maior do que foi dado até hoje. Kawall também discorda da afirmativa de que se um projeto for bom ele encontrará financiamento. Cita que o BNDES tem preenchido importante lacuna nos financiamentos de longo prazo, o que é correto e não está em discussão e, como evidência de sua importância, se refere ao fato de, no período de 2000/04, ele assim ter respondido por 12% a 14% da formação bruta de capital do Brasil. Mas isto é evidência de que, efetivamente? Dada a disponibilidade de recursos subsidiados, o que deve fazer um empresário racional? Claro que utilizar o máximo possível de recursos do BNDES em seus investimentos, ao invés de capital próprio, de terceiros ou de financiamentos às duras taxas de mercado. E estão certos ao agir assim. Como dizia um conhecido comediante, melhor do que isso só dois isso. Quanto mais acessíveis estas linhas de crédito, maior será seu uso e maior será a parcela de formação de capital financiada pelo banco. Maior será também o buraco nas contas públicas. Kawall afirma ser o BNDES "imprescindível" na geração de investimentos e no crescimento das empresas brasileiras, grandes, médias ou pequenas. Argumentar com exemplos não é científico e sempre haverá o contra-exemplo, mas ultimamente temos presenciado um significativo lançamento de ações no Novo Mercado da Bovespa. Dentre as empresas emitentes, três que geraram enorme valor para o país e para seus acionistas (a ponto de incluí-los na nova lista de bilionários da Forbes) foram a Natura, a Gol e a Cyrela. Seria interessante esclarecer e mensurar qual foi o papel do BNDES no crescimento e no sucesso destas empresas, se é que existiu. E quanto à Gafisa, Submarino, Porto Seguro, Cosan, Vivax e UOL, entre outras, que também abriram seu capital no Novo Mercado com sucesso? Estas cresceram e prosperaram, aparentemente, com pouca ou nenhuma ajuda do BNDES. Por que este seria, então, imprescindível? Conforme argumentado em coluna anterior, o BNDES foi e ainda pode ser relevante para o crescimento brasileiro. Sua existência não está em questão, mas sim sua forma de atuação. A contrapartida do subsídio é um grau muito maior de transparência do que é hoje provido. E rejeitar o último, negando a existência do primeiro, é querer tapar o sol com a peneira.