Título: Mercosul: problemas da adolescência
Autor: Renato Baumann
Fonte: Valor Econômico, 17/03/2006, Opinião, p. A13

O futuro do bloco depende de vontade política e de ações orientadas a alcançar objetivos superiores

A assinatura do Tratado de Assunção por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai completa 15 anos neste mês de março. Nesse período, o Mercosul passou por várias etapas, que alternaram expectativas altamente favoráveis com momentos de notável pessimismo, como é freqüente nos adolescentes. A análise dos resultados obtidos é útil para indicar rumos. Mas cabe um alerta: esses anos foram ricos em eventos que afetaram as economias dos quatro países, e não é trivial isolar os efeitos do Mercosul. Segundo a teoria e a experiência histórica, os processos de integração regional são tanto mais bem-sucedidos quanto maiores as semelhanças entre as estruturas de demanda e produção (aumentam as chances de especialização e de complementaridade) e os ajustes em cada país, para permitir a convergência com seus pares. Esses ajustes envolvem mudanças de normas, legislações, instituições e práticas, portanto requerem vontade política. As decisões políticas que levam a essa convergência, por sua vez, só terão lugar se os agentes econômicos envolvidos - empresas, indivíduos, governos - tiverem clara percepção de que participar do exercício de integração traz ganhos, e com isso dêem apoio às mudanças. Do ponto de vista do dinamismo das economias participantes, não se pode afirmar que esses 15 anos tenham sido propriamente um êxito. Se considerado o período entre 1991 e 2004, a Argentina cresceu (a preços constantes de 1995) em média 3,2% ao ano, o Brasil 2,5%, o Paraguai 1,5% e o Uruguai 2,1%. Nesse mesmo período, a América Latina e o Caribe em seu conjunto cresceram ao ritmo de 2,8%, sendo que o Chile cresceu 5,4% anuais. O baixo dinamismo do Mercosul levou a que sua participação no PIB mundial chegasse a um máximo de quase 4% na segunda metade dos anos 90, mas voltasse, já no início da década seguinte, à situação anterior ao Tratado de Assunção (2,5%), bem abaixo de outros grupos de países (36% o Nafta, 27% a União Européia e 21% o Sudeste Asiático). O diferencial nos ritmos de crescimento do PIB contribuiu para que os sócios menores pouco ou nada alterassem seu peso relativo. Em conjunto, Brasil e Argentina correspondiam - tanto na média de 1991/94 quanto na média de 1999/2002 - a mais de 95% do PIB do Mercosul. Nos 15 anos de vigência do Mercosul aumentaram de forma expressiva as relações econômicas dos quatro países com o resto do mundo. Houve nítido aumento tanto da importância relativa das exportações no produto, quanto das importações no consumo aparente. O fato, contudo, de que os sócios menores tenham estruturas produtivas diferenciadas (entre 1990/92 e 2001/04 houve redução no peso relativo do setor manufatureiro na produção do Paraguai e Uruguai), desempenho menos notável, e tenham experimentado um aumento no grau de abertura às importações mais pronunciado que no caso das exportações introduz elementos complicadores no processo negociador. Do ponto de vista dos indivíduos nesses países, a abertura comercial é provavelmente vista como não tendo promovido crescimento suficiente, mas submetido os produtores locais à concorrência com produtos importados. O apoio a novas concessões tende a ser influenciado por esses resultados. O Mercosul é ainda um dos blocos com coeficiente de abertura mais baixo. Sua relação entre exportações mais importações e o PIB não é muito maior que 20%, enquanto em outros blocos regionais esse coeficiente chega a superar os 40%.

Não existe outro exemplo de grupo de países com propósitos tão ambiciosos e diferenças tão marcantes entre si

Os dois sócios maiores têm também menor dependência do mercado regional: do Brasil e da Argentina, ao comércio intra-regional são destinados entre 10% e 20% de suas exportações, enquanto para os dois outros sócios o mercado regional absorve entre um quarto e um terço do valor exportado. Isso significa que o impacto das decisões no âmbito regional é mais expressivo sobre os sócios menores. A população dos quatro países é predominantemente urbana (mais de 55% no Paraguai e acima de 80% nos outros três países, no ano 2000) e tem um grau razoável de alfabetização: o percentual de analfabetos decresceu entre 1990 e 2005, e apenas no caso do Brasil esse percentual supera um décimo da população. Nos demais parceiros a percentagem de analfabetos é da ordem de 5% ou menos. Uma população com acesso às facilidades da vida urbana e com grau expressivo de alfabetização sofre influência variada na determinação de seus padrões de demanda - tanto no que se refere aos padrões de consumo quanto à demanda por postos de trabalho - o que tem implicações para os processos de negociação de preferências comerciais. O que se observa é de fato um desafio. Medido o bem-estar dos indivíduos pelo nível de consumo por habitante (a preços constantes), nos 11 primeiros anos do período de vigência do Mercosul houve aumento (pequeno) do consumo na Argentina (1,9%) e no Brasil (0,2%), enquanto a queda no nível de consumo per capita no Paraguai (-2,0%) e no Uruguai (-1,7%) foi ainda mais intensa do que na década de 80. Esse resultado é ainda mais notável quando se sabe que houve redução expressiva no processo inflacionário nos quatro países. Para o processo negociador isso implica provavelmente uma percepção negativa por parte dos indivíduos, que tendem a considerar o custo de seu país fazer concessões comerciais de forma diferenciada aos vizinhos, sem que isso se reflita no nível de bem-estar, seja pelo ritmo limitado de crescimento da produção, seja pela evolução do consumo per capita. O Mercosul, desde o início, distinguiu-se por ser um processo intergovernamental, sem instituições supranacionais. O exemplo (pouco discutido) dos países nórdicos é prova de que essa opção pode ser bem-sucedida, se atendidas umas quantas condições. Ao mesmo tempo, o Mercosul é único: não existe outro exemplo de grupo de países com propósitos tão ambiciosos e diferenças tão marcantes entre si. A agenda negociadora do Mercosul aos 15 anos de idade compreende temas tão variados como a definição dos passos seguintes em relação ao próprio processo de integração, a promoção de complementaridades produtivas, a adequação das legislações e normas para a solução expedita de controvérsias, o tratamento de questões energéticas e a convivência com novos parceiros, apenas para listar alguns. Daqui a diante, não se trata apenas do desafio de lidar com uma agenda múltipla. Mas fazê-lo levando em consideração os resultados positivos e negativos obtidos. As características insólitas do conjunto dos países do Cone Sul demandam - talvez mais que antes - visão de estadista, vontade política e ações mais claramente orientadas para objetivos maiores, que desestimulem as disputas de cunho imediatista, se o propósito for comemorar os próximos 15 anos.