Título: Lutar com a China não é brincadeira
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 20/03/2006, Brasil, p. A2
Ironia das ironias: comida chinesa, pedida por telefone, foi o almoço de domingo do presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Batista da Costa, que passou trabalhando o fim de semana. Um plantão dedicado à preparação de documentos para reforçar o pedido de novas barreiras contra a massiva importação de brinquedos da China. A compra de brinquedos chineses pelo Brasil aumentou 250% nos últimos três anos. As salvaguardas pedidas pela Abrinq ao Ministério do Desenvolvimento, se concedidas, terão um componente de ineditismo - e de risco - para a política comercial brasileira. O ineditismo se deve ao fato de que o setor de brinquedos encerra, em 2006, oito anos de proteção contra os concorrentes importados de qualquer país, graças as salvaguardas (sobretaxas sobre as importações) permitidas pelo sistema da Organização Mundial de Comércio (OMC). O prazo limite dessa proteção acaba em junho e, pelas regras da OMC, após expiradas as salvaguardas para um setor, ele é proibido de solicitá-las novamente por um período idêntico ao que recebeu de proteção. Mas o caso da China é muito particular: ao associar-se à OMC, o país firmou um acordo em que permite salvaguardas especiais, só contra os produtos chineses. Os acordos de acesso da China à OMC previram dois tipos de salvaguarda: uma contra têxteis e outra para todos os demais tipos de produto. O Brasil ameaçou usar a salvaguarda têxtil e provocou um acordo de auto-limitação das exportações chinesas de tecidos, fios e vestimentas. Até aí, nada de novo, os europeus fizeram o mesmo. Mas nenhum país do mundo ainda acionou o outro tipo, mais geral, de salvaguarda. O governo brasileiro estuda começar em abril um processo desses, possivelmente contra armações de óculos, ou certos tipos de peças para bicicleta. A depender do material que Synésio da Costa preparava no fim de semana, o setor de brinquedos também pode se credenciar para abrir processo semelhante contra os chineses. E aí vem o risco. Comenta-se, em Genebra, sede da OMC, que a diplomacia chinesa está decidida e pronta para questionar, no sistema de solução de disputas da organização, iniciativas de algum país- sócio, para estender salvaguardas existentes contra produtos chineses. Não há jurisprudência formada sobre a possibilidade de se abrir salvaguardas exclusivamente contra a China após encerrado o prazo de alguma barreira já existente, determinada pelo acordo geral de salvaguardas da OMC. A diplomacia brasileira acredita que se aplica ao caso a máxima de José Genoíno (formulada pelo ex-presidente nacional do PT, em momento de rara inspiração epistemológica): uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Salvaguardas cobertas pelo acordo com os chineses nada teriam a ver com as medidas previstas pelo acordo geral de salvaguardas da OMC. Mas os diplomatas prefeririam esperar que algum outro país fosse o primeiro a testar essa tese nos corredores e gabinetes de Genebra.
Setor de brinquedos quer mais proteção
Synésio da Costa diz que não dá para esperar, até porque, acha ele, dificilmente algum outro país terá o interesse dos brasileiros em barrar a entrada de industrializados da China, além dos produtos têxteis. No caso dos brinquedos, de fato, as indústrias de grandes consumidores, Estados Unidos e União Européia, desenham produtos que preferem fabricar em instalações chinesas, que abastecem 80% dos mercados americano e europeu. É um cenário de perspectivas sombrias para as fábricas brasileiras, que, em 1996, garantiram, como proteção, uma sobretaxa de 70% sobre as importações de brinquedos da China, salvaguarda que decresceu progressivamente até os atuais 8%, que acabam em junho, sem garantir maior capacidade de sobrevivência aos produtores nacionais. No Brasil, os chineses detinham cerca de 2% do mercado de brinquedos e hoje têm quase 45%, segundo as associações do setor. Dados do Ministério do Desenvolvimento indicam que a fatia de mercado abastecida pelos fabricantes instalados no país caiu de 70% em 2003 para 48% em 2005. Nesse período, 31 empresas desapareceram, e 10,2 mil empregos foram eliminados no setor. Os fabricantes de brinquedos são um dos exemplos dramáticos da dificuldade de competir com os chineses. Há dúvidas, porém, se a abertura de barreiras contra os chineses permitirá de fato o fôlego sonhado pelos fabricantes nacionais, já que, no mercado internacional, já se fala em uma diminuição da competitividade da China, provocada pela alta de salários e dos preços da matéria-prima. O real valorizado em relação ao dólar aumenta essas dúvidas, e facilita a emergência, no Brasil, dos potenciais competidores internacionais dos chineses, entre eles fabricantes do leste europeu, tailandeses, indonésios e indianos. Simultaneamente ao processo dos brinquedos, os fabricantes de instrumentos musicais, também liderados por Synésio Baptista da Costa, entraram com pedido de salvaguardas anti-China. A angústia das empresas nacionais torna mais delicada a missão que estará na China, chefiada pelo vice-presidente José de Alencar, para discutir o estado das relações entre os dois países. A abertura de processos de salvaguarda, a serem iniciados em abril, é necessariamente precedida de convites ao governo chinês para consultas e negociações de acordos de auto-limitação de importações. A missão de Alencar, de tom mais diplomático, abrirá caminho para uma outra, da comissão de acompanhamento de comércio. A agenda está carregada de contenciosos, desde as barreiras à compra de minério impostas pelos chineses (que, garantiram eles ao Itamaraty, já foram retiradas) à decisão, do conglomerado chinês Lifan, de comprar, desmontar e levar para a China a sofisticada fábrica de motores da Tritec, instalada no Paraná. A iminente enxurrada de processos de salvaguarda - e conseqüentes "consultas" prévias ao governo chinês - dará ao governo de Hu Jintao novos elementos para o tenso período de barganhas que se avizinha na relação entre China e Brasil.