Título: Lições do tribunal iugoslavo
Autor: Quentin Peel
Fonte: Valor Econômico, 20/03/2006, Opinião, p. A17

As acusações de crime de guerra precisam ser breves e os julgamentos devem ser focados, para evitar o risco de dispersão

No domingo retrasado, em Haia, na Holanda, nada poderia dissimular a frustração de Carla del Ponte, promotora-chefe do tribunal de crimes de guerra ocorridos na Iugoslávia, diante da súbita morte de Slobodan Milosevic apenas semanas antes da data prevista para o fim de sua maratona processual. O ex-presidente iugoslavo era réu diante de nada menos que 66 acusações de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos entre 1991 e 1999. O processo constituiu, provavelmente, a mais exaustiva e fatigante tentativa jamais empreendida visando atribuir a responsabilidade por crimes individuais a um ex-chefe de Estado. Quase 300 testemunhas foram trazidas pela promotoria e 5 mil provas foram apresentadas no tribunal. Em seguida, Milosevic teve o mesmo tempo para defender-se. Os juízes empenharam-se ao máximo para dar a ele o direito de interrogar testemunhas, mesmo quando isso significava pouco mais do que tolerar sua manifestação de prepotência. Após quatro anos, ele tinha ainda apenas mais 40 horas de defesa quando foi encontrado morto em sua cela, no sábado. Sua morte súbita "subtrai às vítimas a justiça que necessitam e merecem", disse del Ponte, em Haia. Mas a própria duração prolongada do julgamento, repetidamente protelado pelos problemas de saúde do acusado, demonstra a extraordinária dificuldade de levar um ex-chefe de Estado à Justiça. O fato de um julgamento tão importante não ter chegado ao fim é um revés para a reputação do tribunal das Nações Unidas, e coloca novas questões sobre a eficácia da Justiça internacional como um todo. Em primeiríssimo lugar, ao arrolar tantas acusações, o tribunal pareceu estar confundindo a necessidade de responsabilizar um homem com a necessidade de produzir uma clara narrativa de crimes de guerra e atrocidades para os livros de história. Então, ao buscar ser escrupulosamente justo, o tribunal deu a Milosevic uma plataforma extraordinária para zombar de seus procedimentos, atuando para uma platéia doméstica convencida de que o tribunal representava uma "justiça do vencedor" depois da guerra civil. Neste caso, isso está longe de ser verdade. Diversamente dos julgamentos de Nuremberg, na Alemanha, onde os procedimentos e conclusões foram explicitamente ditados pelos vitoriosos aliados na Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Haia representa um espectro internacional muito mais amplo. Entretanto, sua equanimidade foi também sua fraqueza.

O fato de o julgamento de Milosevic não ter chegado ao fim coloca novas questões sobre a eficácia da Justiça internacional como um todo

Apesar de Milosevic ter escapado ao veredicto do tribunal, o processo da Justiça é crucial, diz Richard Dicker, diretor do programa de justiça internacional da Human Rights Watch, sediada em Nova York. As vítimas das guerras nos Balcãs nunca terão a satisfação de ouvir um veredicto lido contra Milosevic no tribunal, diz ele, mas pelo menos "Milosevic morreu sob indiciamento, destituído de seus poderes, com uma longa e oficial enumeração e registro de seus crimes para a posteridade". O contraste com o julgamento em andamento de Saddam Hussein, no Iraque, dificilmente poderia ser maior. O ditador iraquiano está diante de um tribunal nacional em seu país natal, e a lista de seus crimes foi abreviada deliberadamente para simplificar a acusação. Mas o tribunal está sujeito a enorme pressão política, o que já provocou o afastamento de dois juízes. Hussein conseguiu transformar os procedimentos em uma farsa em freqüentes ocasiões, denunciando os procedimentos como uma impostura. Dicker acredita que uma combinação de juízes nacionais e internacionais, como a utilizada no tribunal de crimes de guerra em Serra Leoa, teria sido mais justa e mais eficaz no Iraque. No longo prazo, porém, a eficácia da Justiça internacional será decidida pelo Tribunal Criminal Internacional (TCI), instituição apenas recém-nascida em Haia, a despeito de ferrenha oposição do governo americano. Esse tribunal já iniciou investigações sobre crimes de guerra no Congo, Uganda e Sudão. Membros do TCI estão, seguramente, dando ouvidos às lições do tribunal iugoslavo. Eles sabem que as acusações devem ser breves e os julgamentos precisam ser focados. Eles sabem que um histórico de processos bem-sucedidos é essencial para obter credibilidade para o processo. Mesmo assim, a menos que os Estados Unidos descontinuem sua hostilidade ao TCI, o tribunal nunca terá a presença vigorosa de que necessita para fazer os criminosos de guerra temerem as conseqüências de suas ações.