Título: O BC e o STF
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2006, Brasil, p. A2

O Banco Central repetiu - como sempre tem feito nos momentos de decisão - a busca teatral da sua "credibilidade", fazendo menos do que devia. Deixando de lado a evidente cumplicidade entre o setor financeiro e o Banco Central, talvez os movimentos lentos ("smoothing") nas manobras da taxa de juros sejam conseqüência do entendimento que têm os nossos "cientistas" de alguma política "ótima" deduzida dos mais sofisticados modelos da moderna teoria monetária. O que resta provar, entretanto, é que a nossa é uma política monetária "ótima" (em qualquer que seja o seu sentido). Como temos insistido, até o momento não se encontrou nenhuma razão objetiva visível que sugira ao observador relativamente neutro que no quarto trimestre de 2004 corria-se o risco de uma elevação importante das "pressões inflacionárias". Mesmo agora, com o benefício que sempre transforma o economista num sábio (ou seja, quando o "futuro" já é "passado"), não há evidência convincente. Cada vez mais a ação do Banco Central emerge como uma reação instintiva à sua "crença" que o Brasil não pode crescer mais do que 3,5% ao ano sem acelerar a inflação. Estávamos rodando a 5% ao ano no último trimestre de 2004 quando o Banco Central teve a "informação" (egoisticamente guardada só para si) de que a inflação estava se acelerando. Deu, então, início, à escalada longa e desgastante de aumentar a Selic à razão de 0,25% ao mês até maio de 2005. O relatório de mercado do Banco Central do dia 17 de março mostra que o "mercado" espera uma inflação nos próximos 12 meses da ordem de 4,37%, o que nos deixa ainda com uma taxa real de juros, para o papel sem risco e de maior liquidez do país, ligeiramente acima de 11%. Se acreditarmos no tal "mercado" e nas previsões resultantes do permanente incesto praticado entre ele e o Banco Central, terminaremos 2006 com uma taxa Selic de 14,4%, o que sugere que começaremos 2007 com uma taxa de juro real de 9,6% que, seguramente será, ainda, a maior do mundo. Até quando? Este não tem que ser, necessariamente, o resultado da política monetária que ainda está por fazer-se em 2006. Acendeu-se uma luz. Há alguns meses um cérebro peregrino teve a coragem de enfrentar "os cientistas e seus modelos" para divergir da decisão do Copom, mas foi completamente ignorado. Nesta última decisão, os votos a favor de uma pequena aceleração da queda da Selic (de 0,75% para 1,0% a cada 45 dias) atingiram 1/3 do colégio, o que, seguramente, será muito mais difícil de ignorar.

Decisões do BC precisam ser mais transparentes

Esse fato nos leva a repetir a sugestão que fizemos quando houve o primeiro voto discordante no Copom. Cada membro deveria deixar escrito e arquivado, não apenas o seu voto, mas as "razões" de ordem técnica ou política que o levou à conclusão. Depois de um prazo razoável (nada muito mais do que 12 meses) os votos e suas justificativas deveriam ser publicados. Isso permitiria à sociedade julgar a qualidade técnica do votante, o grau de sua informação no momento da decisão e, mais importante do que tudo, a sua "intuição", isto é, como combina "razão" e "emoção" ou seja, ciência e arte. O Banco Central autônomo é responsável por um dos bens públicos mais preciosos que o Estado tem condições de proporcionar à sociedade: a estabilidade do poder de compra da moeda e a higidez do sistema financeiro. Trata-se de uma instituição cuja importância para o cidadão é comparável à do Supremo Tribunal Federal: enquanto a este cabe, precipuamente, a guarda da Constituição (é o "garante" das liberdades individuais e da proteção ao patrimônio) aquele cuida da estabilidade do valor da moeda, que por sua centralidade nas transações econômicas afeta as "garantias individuais" e os "patrimônios". O ritual no preenchimento de ambos é, aliás, o mesmo: por indicação do Poder Executivo, o candidato é submetido à investigação e aprovação pelo Senado, com mandato fixado em lei. A fundamental diferença entre as duas instituições é o grau de sua transparência. Enquanto as decisões do Supremo Tribunal Federal sempre foram públicas e agora, em tempo real e a cores são conhecidas por qualquer cidadão, o Banco Central cultiva o segredo. Os juízes são avaliados instantaneamente pela qualidade dos votos que explicitam nos julgamentos. Os diretores dos Bancos Centrais em todo o mundo fogem dessa avaliação, porque seus argumentos são, em geral, diluídos no "mistério" e na busca da "unanimidade" que facilita a política monetária. Quando a qualidade e competência da política monetária atinge o nível de dúvida que recai sobre a nossa, só a transparência pode salvá-la. O caso mais escandaloso, que revela o intenso desejo de transformar o Banco Central numa "sociedade secreta" portadora de uma "pseudo-ciência", é o da recente censura às publicações do seu excelente departamento de pesquisas, criado ao tempo de Armínio Fraga e Sergio Werlang. Aliás, está na hora de o Congresso exigir maior transparência também nas operações do BNDES e dos fundos de pensão das estatais que, subsidiadas com recursos públicos, não têm razão para serem protegidas pelo "sigilo bancário".