Título: O caos iraquiano, três anos após a ocupação
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2006, Opinião, p. A12

Três anos após a invasão americana, o Iraque é o caos. Os avanços para a reconstrução institucional do país empalideceram após o festival diário de atentados, seqüestros e mortes que assolam as rivais comunidades xiitas e sunitas. O preço da guerra está sendo pago pelos iraquianos que, ao contrário do que ocorre nas demais nações muçulmanas, não têm mais segurança sequer em seus recintos religiosos. Parte da conta foi cobrada também do presidente George W. Bush, que amarga o pior índice de popularidade desde que está no cargo: 37%. Mais da metade dos cidadãos dos EUA é hoje contrária à presença das tropas no Iraque. A opção pela retirada, porém, só será pior que a de sua permanência. Bush descarta a hipótese. A onda de violência, intensificada após o atentado à mesquita de Askariya, local sagrado dos xiitas, continua a varrer o Iraque e motiva os os prognósticos mais sombrios. "Não se pode descartar o risco de uma guerra civil", advertiu o presidente iraquiano, Jalal Talibani, curdo. O embaixador dos EUA no Iraque, Zalmay Khalilzad, disse que a caixa de Pandora foi aberta, um presságio de novos, surpreendentes e desastrosos fatos. O tiro certeiro na Mesquita Dourada atingiu o alvo - tornou a rivalidade entre as duas facções religiosas insuportável e destruiu parcialmente a precária negociação política para a formação de um governo de união nacional. Não só a complexa costura política foi paralisada, como sofreu reveses. A cabeça do primeiro-ministro, Ibrahim Al-Jaafari, continua a prêmio mesmo no seio da coalizão majoritária xiita e curda, que querem impedi-lo de ocupar o cargo. A tentativa de coalizão para criar um governo, o primeiro passo vital para a difícil pacificação, continua a patinar nas rixas sectárias e na violência generalizada. A presença das tropas de ocupação é insuficiente para assegurar a reconstrução do Estado. A base da economia iraquiana, a extração de petróleo, continua distante da média de 2,5 milhões de barris de 2002 - hoje é de 1,8 milhão - e a infra-estrutura sobrevive em estado precário. Há luz por apenas 8 horas diárias na capital Bagdá e apenas por 12 horas no resto do país. A formação de nova polícia e novo Exército locais é lenta e incerta. Um dos grandes riscos é que parte das forças de repressão possa ser instrumentalizada por grupos da coalizão majoritária e servir de arma de vingança contra os sunitas - por enquanto há apenas casos isolados desta tendência. Desde que os EUA colocaram o pé no Iraque, até agora a situação política não se tornou menos hostil aos americanos. Grupos xiitas avançaram nas eleições no Egito, o radical Hamas ganhou as eleições palestinas, os governos saudita, sírio e jordaniano estão cada vez mais preocupados com o avanço dos xiitas no Iraque e no Líbano e o Irã passou a desafiar abertamente os EUA e seus aliados com o seu programa nuclear. Por puro desespero ou por sabedoria diplomática, os EUA tomaram a iniciativa de discutir com o governo iraniano um apoio à pacificação no vizinho Iraque. As frequentes ameaças ao regime iraniano, que agora entrou no léxico da Casa Branca, tornam o ambiente carregado demais para que algo útil saia desses encontros. Ainda que a presença de tropas americanas no Iraque e a ação americana para devolver o país à normalidade beneficiem os xiitas, o governo iraniano teme um inimigo tão poderoso estacionado em suas fronteiras. A situação é extremamente volátil e há sempre o risco de uma internacionalização do conflito, com os governos árabes, majoritariamente sunitas, tentando sufocar uma iniciativa de construir a democracia sob o domínio de seus rivais religiosos. Esses são limites bastante claros da ofensiva militar e ideológica para espalhar a democracia pelo Oriente Médio, preconizada pelos neoconservadores de Bush. Avanços nesta direção, como já ficou claro, possivelmente não beneficiarão as forças políticas aliadas dos EUA - o mais provável é que ocorra o contrário. São as restrições políticas que acabam por limitar e nublar as ações militares. As tropas americanas são insuficientes para impedir que xiitas e sunitas se matem em grande escala. No caso de uma guerra civil, com participação de governos árabes, seriam alvos fáceis e frágeis. A única esperança repousa na problemática formação de um governo de união nacional. Um acordo de cúpula das principais forças nacionais isolaria os radicais, faria avançar a reconstrução institucional e permitiria que os EUA saíssem aos poucos do atoleiro em que se meteram.