Título: Devagar e sempre
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2006, Opinião, p. A13

O crescimento econômico é um meio e não um fim. E tem capacidade muito variável de fazer com que as sociedades atinjam os objetivos almejados. Duas singelas idéias que ainda não imbuíram a maioria das análises sobre a situação do Brasil. Elas revelam obsessão pelo crescimento como um fim em si mesmo, supondo ingenuamente que ele mantenha uma relação automática, constante, permanente e até eterna com o desenvolvimento. Daí porque houve uma espécie de unanimidade rodriguiana em atacar Lula por ter rebaixado a importância das taxas de crescimento do PIB em entrevista ao "The Economist". Todavia, ao contrário do que se lê em quase todos os artigos sobre o tema, este país não precisa invejar China, Índia, Coréia ou Chile. No limite, seria até o contrário, pois os benefícios do crescimento vêm sendo bem melhor aproveitados por aqui. Nos últimos três decênios, a capacidade de transformar crescimento em desenvolvimento foi bem superior no Brasil do que em todos os países citados. Quatro vezes a do Chile, por exemplo, pois houve aqui quase o mesmo aumento do IDH com um quinto de sua taxa média de crescimento per capita. Para muitos, só poderá parecer mentira que o Brasil tenha elevado seu IDH de 0,645 para 0,792 com um oitavo do desempenho médio da economia coreana e um décimo da chinesa, como mostra a tabela. E não é apenas nessa transmutação de crescimento em desenvolvimento que o Brasil vence a parada. Mais ainda no tocante à sustentabilidade ambiental desse desenvolvimento. Apesar de toda a devastação e degradação perpetrada aos seus principais ecossistemas, apesar da propensão de suas elites em desvalorizar o amanhã e apesar da infinidade de tristes conflitos ambientais que pipocam diariamente, mesmo assim o Brasil tem se mostrado superior aos outros quatro países. O mais reconhecido sistema de avaliação comparativa das nações mostra que no provão de sustentabilidade ambiental o Brasil está na frente, mesmo que com medíocre nota 6, enquanto Índia e Coréia não conseguem 5 e a China nem mesmo 4. Todavia, é imprescindível perguntar: qual tem sido o desempenho desses países na redução da pobreza? A indagação é crucial, pois só em raríssimas situações ela chega a recuar com débil crescimento econômico. Para comparações internacionais, só existe um bom indicador, e apenas desde 1997: o Índice de Pobreza Humana calculado pelo Pnud para países em desenvolvimento (IPH-1). Em vez do vexame das meras estimativas do tamanho da população de baixa renda, o IPH-1 avalia simultaneamente três das principais dimensões da pobreza: longevidade, conhecimento e nível de vida. A primeira dessas dimensões é dada pela probabilidade de não se viver 40 anos. A segunda, pela taxa de analfabetismo de adultos. E a terceira, por duas variáveis da privação econômica: falta de acesso a uma fonte de água adequada e proporção de crianças menores de cinco anos com peso insuficiente para a idade.

Capacidade de transformar crescimento econômico em desenvolvimento foi muito maior no Brasil do que na China, Índia, Coréia ou Chile

Nem é preciso dizer que nesse quesito a Coréia só pode ser comparada aos países centrais, para os quais existe índice bem mais exigente de pobreza humana. E na comparação do Brasil com os restantes, o único caso de inveja seria o do pequeno Chile, onde o IPH-1 caiu de 4,8 para 3,7 desde 1997, enquanto no Brasil caía de 15,8 para 10,3. A China até poderá em breve alcançar o Brasil, pois derrubou a pobreza humana de 19,0 para 12,3. Mas não é o caso da Índia, onde ela só caiu de 35,9 para 31,3. No que se refere às desigualdades de renda, riqueza, raça, gênero, região etc., as mensurações são tão frágeis que não permitem comparações razoáveis. Pode-se até lembrar que o desempenho econômico chileno tem sido incapaz de reduzir as desigualdades de renda, justamente quando o Brasil começa a vislumbrar resultados muito positivos, como confirmam estudos do Ipea e do Bird recentemente divulgados. Mas seria grave equívoco supor que a desigualdade de renda seja representativa do conjunto das principais desigualdades. Basta pensar nas mulheres chinesas, nas castas indianas e nas populações negras do Brasil. Nenhum desses argumentos pode incentivar, é claro, qualquer tipo de resignação com a derrapagem econômica brasileira. Mas todos são fundamentais para impedir que tanta afobação patriótica em romper com a estagnação encubra a crucial questão do estilo de crescimento. Para que se dê um minuto de atenção ao relatório intitulado "A Qualidade do Crescimento", da equipe do Banco Mundial, coordenada por Vinod Thomas, felizmente traduzido desde 2002 pela Editora Unesp. De resto, nunca será demais lembrar que a cor da China não é mais o amarelo, nem o vermelho de sua bandeira. É o preto da fuligem que escurece o pôr-do-sol, cobre as cidades de fumaça, tinge as águas dos rios e encharca de chuva ácida os arrozais. Mais de 6 mil trabalhadores morrem por ano em 28 mil minas de carvão parecidas com as do início da Revolução Industrial. E com matriz energética tão capenga, o que se deve esperar de uma ditadura tecnocrático-militar, cujo exército popular "libertou" o Tibet em 1950, participou da Guerra da Coréia em 1950/53, atacou a Índia em 1962, invadiu o Vietnã em 1979, e, dez anos depois, massacrou os estudantes democratas na praça Tienammen? A um brasileiro que diga ter inveja dos chineses só se pode rugir: devagar com o andor, que o santo é de barro!