Título: A hostilidade mundial aos EUA
Autor: Philip Stephens
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2006, Opinião, p. A13

É absurdo tratar o antiamericanismo como uma resposta inteligente aos erros do governo Bush

Pouco tempo atrás, ouvi de um respeitado diplomata o comentário de que, após um curto interlúdio durante a década de 90, estamos vivendo novamente num mundo bipolar. De um lado, como antes, estão os EUA. De outro, o antiamericanismo tomou o lugar da União Soviética como principal contrapeso nas questões mundiais. Não estou certo de que isso proporcione uma descrição completa dos intrincados contornos do atual panorama geopolítico. Mas basta um relance, e o Oriente Médio nos revela o que o diplomata tinha em mente. A sangrenta insurgência no Iraque, a tensão nos territórios palestinos e as ambições nucleares de Teerã, tudo exprime hostilidade aos EUA. Ouça detidamente as conversas da classe política européia e perceberá um ressentimento mais contido. Pontes oficiais foram reconstruídas desde a ruptura resultante da invasão do Iraque. Mas há um reflexo, especialmente entre os liberais europeus, segundo o qual, se Washington assume uma posição, é boa postura política posicionar-se no campo oposto. O que foi dito acima é colocado mais como descrição do que como juízo de valor. De fato, creio que a política externa adotada por aqueles reunidos em torno de Dick Cheney, o vice-presidente dos EUA, causou um prejuízo imensurável à autoridade moral americana e a seu interesse nacional. Imagino também, no entanto, que esse ponto de vista é lugar-comum no Departamento de Estado. Por outro lado, é absurdo tratar o antiamericanismo como uma resposta inteligente, ou de alguma forma moral, aos erros do governo americano. Muitos europeus viajam na estrada que termina caracterizando os jihadis da Al-Qaeda e os baathistas no Iraque como combatentes pela liberdade, e uma teocracia repressiva em Teerã como inofensiva guardiã da dignidade iraniana. Viés análogo é assumido quanto à Palestina. A estratégia sensata após as eleições palestinas é dar ao Hamas tempo e espaço para trocar, se assim pretende, táticas suicidas por negociação política. Mas não é porque a exigência de que o Hamas dê provas de suas intenções é apresentada mais enfaticamente por Israel e pelos EUA que deveríamos sugerir que ela não é razoável. Dito isso, os EUA não podem escapar às conseqüências de seu comportamento anterior. Washington deve reconhecer que a desconfiança em relação a suas intenções tornou-se um dos mais poderosos fatos da geopolítica. O preço do unilateralismo arrogante do primeiro mandato de George W. Bush está sendo pago com ampla desconfiança sobre as motivações do governo americano. A nova estratégia de segurança nacional de Bush enfatiza transformações democráticas como tema central da política externa americana. Isso deveria ser motivo para comemoração pelos aliados. Ao contrário, a reação é de ceticismo. Nada disso é de bom augúrio para uma reação internacional coerente ao que a nova estratégia americana identifica como sendo a mais grave ameaça à segurança mundial: a presumida busca, pelo atual regime iraniano, de uma capacitação em armamentos nucleares. Até agora, o denominado EU-3 - Reino Unido, Alemanha e França - colaborou bem com os EUA na formação da ampla coalizão que votou pela acusação contra o Irã perante o Conselho de Segurança da ONU. Não deve ter sido confortável para Teerã que países como Brasil, Índia e Egito tenham se associado à Rússia e à China no apoio à condução do caso às Nações Unidas. O vigor da coalizão assinala o reconhecimento dos verdadeiros perigos. Mesmo desconsiderando os exacerbados pronunciamentos de Mahmoud Ahmadi-Nejad, o presidente iraniano, a obtenção da bomba por Teerã seria perigosamente desestabilizadora. Se o atual cenário internacional de não-proliferação parece esgarçado, um Irã dotado de armas nucleares o deixaria esfarrapado.

Se não houver solução diplomática para a busca da bomba pelo Irã, haverá ainda menor probabilidade de que exista uma solução militar

Aqui, porém, a diplomacia fica mais complicada. A oportunidade está no desconforto que a maioria dos iranianos sente por seu país ser qualificado de Estado pária. O país está a um só tempo mais pluralista e voltado para o exterior do que o atual regime tolera. Encarar os EUA em defesa do direito iraniano à tecnologia é uma coisa. Isolamento internacional é outra. Além disso, apesar da atual exuberante receita petrolífera, o Irã tem dificuldades econômicas. Grande parte de seu capital é exportado. O país precisa de investimentos e de tecnologia para modernizar sua indústria petrolífera. Não há emprego suficiente para os 750 mil jovens que entram no mercado de trabalho a cada ano. Muitos dos profissionais com melhor formação emigram. As pressões diplomáticas dirigidas contra o regime, porém, serão sentidas lenta e desigualmente. Os diplomatas ocidentais que estão mapeando o rumo na ONU admitem que o empenho em implementar o programa nuclear é muito mais profundo do que apenas o empenho de Ahmadi-Nejad. E quanto mais a comunidade internacional aproximar-se da imposição de sanções penosas ao Irã, mais frágil resultará o consenso. O apoio da Rússia ao atual processo na ONU é condicionado e vinculado, no curto prazo, ao empenho de Moscou em assegurar que a cúpula do "Grupo dos Oito", a ser realizado em breve em São Petersburgo, seja um sucesso. A China deixou claro que não sacrificará seus interesses energéticos no Irã com medidas punitivas. Mesmo entre os governos do EU-3, há dúvidas sobre se sanções econômicas produziriam, efetivamente, algum resultado. Elas poderiam fortalecer, em vez de minar, a posição dos radicais em Teerã. Neste ponto, retornamos às dúvidas mais generalizadas sobre a motivação americana. A Casa Branca diz que a diplomacia da ONU precisa ter êxito para que uma confrontação seja evitada. A suspeita de muitos na comunidade internacional é que Washington veja o processo diplomático como um tedioso precursor de ação militar. Diplomatas europeus que trabalharam em íntima colaboração com o governo americano nos últimos meses dizem não ter detectado tal intenção - visão essa manifestada publicamente por Jack Straw, o secretário de Relações Exteriores britânico. Outros não estão tão seguros, salientando a dissonância entre a abordagem comedida de autoridades do Departamento de Estado e a linguagem belicosa de Cheney. Aqui reside o dilema de Washington. Com alguma justiça, pode argumentar que manter todas as opções em aberto reforça as chances de que a diplomacia possa funcionar. Mas se outros suspeitarem que o processo na ONU foi concebido como o foi no caso do Iraque - para dar cobertura a subseqüente ação militar - a coalizão sairá rachada. Há uma maneira pela qual Bush poderia restabelecer a confiança. Os EUA poderiam oferecer o que até agora recusaram sistematicamente: um acordo que oferecesse garantias de segurança e progressiva normalização de relações em troca de um compromisso absoluto, por parte do Irã, de abster-se de desenvolver armas nucleares. Simultaneamente, tal curso deixaria vulneráveis os clérigos em Teerã e começaria a restaurar a autoridade dos EUA como guardiões da ordem internacional. Se não houver solução diplomática para a busca da bomba pelo Irã, haverá ainda menor probabilidade de que exista uma solução militar.