Título: Transgênicos e a propriedade intelectual
Autor: Paulo de Bessa Antunes
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2006, Legislação & Tributos, p. E2

"Estranho que os que atacam os OGMs devido a seus supostos males não sejam favoráveis às tecnologias de restrição de uso"

O imaginário popular, com o auxílio de fortes campanhas contra os transgênicos, tem associado os produtos contendo organismos geneticamente modificados (OGMs) com danos ao meio ambiente. Os transgênicos, como tecnologia, já são utilizados há bastante tempo e, até agora, não existe qualquer prova efetiva de que eles causem prejuízos à saúde humana ou ao meio ambiente. Como todos nós sabemos, em política, mais importante do que o fato é a versão do fato. E a versão mais divulgada é aquela que imputa aos transgênicos o papel de vilão ambiental. Uma questão que tem sido muito pouco explorada em toda a polêmica sobre os transgênicos é a que se refere à relação entre os direitos de propriedade intelectual e a proteção do meio ambiente. A questão, embora complexa, merece ser suscitada. Uma das principais críticas ambientais é que as plantas contendo organismos geneticamente modificadas, ao se intercruzarem com outras espécies, podem dar origem a espécies desconhecidas, que poderiam vir a ser prejudiciais às lavouras e, até mesmo, infectar outros grãos utilizados para alimentação humana ou animal, acarretando graves danos ambientais. Uma das alternativas tecnológicas para que tal risco possa ser efetivamente evitado é a produção de lavouras estéreis contendo OGMs, desta forma, não haveria a possibilidade de reprodução e, portanto, qualquer dano ambiental que fosse constatado, em tese, ficaria restrito a uma única geração. Isso, do ponto de vista técnico, é a tecnologia genética de restrição de uso e é o que tem sido conhecido popularmente como "Terminator", nome que, diga-se a bem da verdade, é horroroso e lembra filme de terror de quinta categoria. A nova lei de biossegurança brasileira proíbe expressamente a utilização da tecnologia acima mencionada. Tal norma é fruto de uma enorme pressão de muitos produtores rurais e ONGs e expressa uma inadequada compreensão, seja da importância das tecnologias de restrição de uso para a proteção ambiental, seja da extensão dos direitos de patentes sobre os genes e a sua relação com a lei de cultivares. A seqüência genética, quando patenteada e introduzida artificialmente em uma planta que originariamente não a possuía, continua protegida quando a semente é reproduzida, visto que ela em si não é uma variedade vegetal. Busca-se com a proibição das tecnologias de restrição de uso assegurar a manutenção de um velho hábito de pequenos agricultores, que é a manutenção e a reprodução de sementes para uso próprio, conforme assegurado pela lei de cultivares. No Brasil, devido às nossas peculiaridades, o hábito dos pequenos agricultores se tornou um grande negócio na mão de empresas dedicadas à pirataria de sementes. No caso de cultivares que contenham OGMs existem duas formas distintas de proteção jurídica aplicáveis. A primeira é a proteção específica que recaí sobre a planta em si, no caso a lei de cultivares. A outra é a proteção à tecnologia da modificação genética que se faz por meio de patentes e, definitivamente, não se confundem. O cultivar é um melhoramento de espécie já existente ou o resultado de cruzamento de espécies já existentes, gerando uma terceira. O cultivar não pode se confundir com a introdução artificial de genes que não sejam capazes de tornar a espécie distinguível. Um planta contendo OGMs é substancialmente idêntica àquela que não o possua. São indistinguíveis, por exemplo, a soja "normal" daquela contendo OGM. Já um cultivar será, por definição, diferente de outro.

Direitos de patente sobre modificações genéticas não se confundem com os direitos específicos sobre os cultivares

No caso das sementes destinadas à produção agrícola com verdadeira escala "industrial", parece pouco ético que os investimentos para desenvolver a tecnologia sejam tratados de forma diversa daquela dispensada aos investimentos da agricultura. Sendo certo que a modificação genética se transmite pelas gerações das plantas, a proibição de tecnologias de restrição de uso implica que o plantador da semente passa a auferir um benefício decorrente da tecnologia sem que tenha remunerado o titular dela. Em direito civil, isto se chama enriquecimento sem causa. Uma outra questão importante é saber se a reprodução por várias gerações é capaz de assegurar que a modificação genética continue a produzir o mesmo efeito que produziu na primeira geração e, ainda mais, se a reprodução aleatória e sem critério é capaz de assegurar os níveis sanitários e ambientais necessários para que não existam problemas. Há um outro ponto importante a ser considerado com a proibição de tecnologias de limitação de uso. Se, de fato, os direitos de patente sobre as modificações genéticas não se confundem com os direitos específicos sobre os cultivares, como tem sido entendido em algumas decisões judiciais, e esta parece ser a posição acertada sobre a matéria, temos que a reprodução da modificação genética implica uma renovada infração aos direitos de patente e, portanto, um verdadeiro prejuízo para o agricultor. Por fim, parece-me bastante curioso o fato de que aqueles que atacam os OGMs, devido aos supostos males que eles produzem no meio ambiente, não se posicionem favoravelmente às tecnologias de restrição de uso, visto que elas permitem que se evite a reprodução dos supostos danos.