Título: Governo vi@ rede
Autor: Rogério Godinho
Fonte: Valor Econômico, 21/03/2006, Valor Especial, p. F1

Com liderança em e-gov na América Latina, o Brasil tem avançado na gestão administrativa virtual com redução de gastos, aumento da eficiência e diminuição da corrupção

Aos céticos, parece puro determinismo tecnológico. Para especialistas, entretanto, o governo eletrônico aumenta a transparência e a responsabilidade do governo perante os cidadãos. Otimiza os processos públicos com ganhos notáveis de eficiência. E reduz custos. Nos últimos anos, a esfera estadual e o setor Judiciário foram as grandes estrelas nessa área. Estados como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Pernambuco e São Paulo avançaram significativamente na modernização da máquina pública e na implementação de tecnologias da informação. Em diversos tribunais, cidadãos, juízes e advogados já conseguem acompanhar eletronicamente o andamento de processos. Em termos de projetos mais executados, as compras eletrônicas são provavelmente o tipo de ferramenta de maior sucesso e fama. De acordo com o índice do e-Licitações, 40% dos Estados operam um pregão eletrônico e o restante utiliza um serviço similar oferecido pelo Banco do Brasil. A segunda estrela do e-gov é a arrecadação de impostos. Não se trata apenas do Imposto de Renda, caso brasileiro mais comentado no que se refere a tributos. Neste, o sucesso é inconteste, ao lado de outro exemplo internacionalmente citado, o voto eletrônico. O Brasil é o único país do mundo em que 98% da população paga o imposto dessa forma. Mesmo na Europa, a média alcançada é de 40%. Há outros exemplos dignos de nota também. No IPVA, o avanço é considerável. Diversos Estados eliminaram a necessidade de o proprietário do veículo sair de casa para pagar o imposto e, por tabela, a corrupção envolvendo intermediários e funcionários públicos. Ainda na categoria prestação de contas, o mais importante projeto isolado de e-gov atualmente é justamente o da nota fiscal eletrônica. A operação piloto envolve 19 empresas, seis Estados e a Receita Federal. Quando estiver concluído e alcançando todas as empresas, há cálculos que apontam uma economia potencial nos setores público e privado de mais de R$ 35 bilhões, de acordo com dados da consultoria especializada em governo E-stratégia Pública. A arrecadação aumentaria cerca de 20% por meio da redução da evasão fiscal. As despesas correntes, como impressão, envio, arquivamento e outros processos envolvidos no atual modelo com papel teriam cerca de 10% de redução de custo. Há ainda as vantagens indiretas, com o enorme ganho de produtividade que a troca em tempo real de informações entre empresas e setor público pode proporcionar. As mudanças exigem enormes esforços dos gestores. E o custo financeiro é, possivelmente, um dos menores. A maior dificuldade é vencer barreiras culturais e realizar uma grande revisão de processos. Para tornar possível o IPVA eletrônico, por exemplo, as bases de dados da Secretaria da Fazenda de cada Estado e dos Detrans têm de ser integradas. Em pregões eletrônicos, cadastros de fornecedores precisam ser unificados. As barreiras não são tecnológicas. O aspecto técnico é o mais simples. A dificuldade está em fazer acordos, chegar a consensos e estabelecer padrões e processos comuns. Apesar das dificuldades, o Brasil tem uma posição de destaque no governo eletrônico. É provavelmente o líder na América Latina. "Acredito que Brasil está na frente do Chile e de muitos países europeus", avalia Florência Ferrer, diretora-presidente da E-stratégia Pública. Mesmo considerando o nível avançado alcançado pelo Chile nos últimos anos, principalmente em questões como a troca de informações em tempo real entre os sistemas de diferentes órgãos públicos. Ou dos sistemas de gestões implementados no México, uma área em que o Brasil ainda está muito atrasado. A opinião da especialista contraria índices como a pesquisa Global de E-government 2005 das Nações Unidas. O levantamento classifica os 191 membros da ONU, de acordo com os índices de acesso a sites, infra-estrutura de telecomunicações e recursos humanos. Pelo estudo, os Estados Unidos estão no topo da classificação sobre disponibilidade de serviços, com índice de 0.9062 - quanto mais próximo de um, mais desenvolvido é o país. O Brasil tem 0.5981 ponto, na 33ª posição entre os 179 países conectados. O trabalho reconhece o desempenho brasileiro em algumas categorias, como o oitavo lugar em facilidade de pagamento de serviços públicos. Na utilização total de serviços, ocupa o 12º lugar. Mesmo assim, a colocação geral não condiz com o atual estágio do governo eletrônico brasileiro. "Normalmente se mede apenas os governos federais", explica Florência. No resto da América Latina, essa estratégia dá certo. Em geral, os Estados, chamados de províncias, não costumam ter autonomia. No Brasil, a iniciativa estadual consegue marcar pontos importantes e criar ilhas de excelência. Há ações em andamento para que o país mantenha essa liderança. Órgãos públicos no Executivo e no Judiciário começam a testar portais de colaboratividade, ambientes que lembram uma intranet corporativa. "É mais do que isso", afirma Paulo Cunha, diretor de setor público e educação da Microsoft. "Grupos envolvidos com projetos específicos podem gerenciar e concentrar o trabalho no mundo virtual, sem depender mais apenas de telefone e e-mail". Empresas como a Infraero estão testando a ferramenta e o tema já está no planejamento da Câmara de Deputados. Projetos de lei poderão ser discutidos na internet e até receber sugestões em pequenas consultas públicas virtuais. A sofisticação das ferramentas do e-gov também traz a possibilidade de grandes reduções de custos, o que criou a máxima de que bons investimentos em tecnologia no setor público sempre possibilitam um retorno de investimento no curto e médio prazos. A lista é extensa. Na categoria de reengenharia e revisão de infra-estrutura há o exemplo bastante comentado da utilização do software livre. De medidas aparentemente simples podem sair grandes economias, como a revisão das impressões feitas nos órgãos públicos. Aparentemente prosaica, a medida tem potencial para envolver grandes números. Nas três esferas de governo, o Brasil deve gastar este ano cerca de R$ 12 bilhões em insumos como papel, cartuchos e outros gastos. Consultorias apontam que 25% do valor gasto nessa atividade pode ser economizado com a remodelagem de processos e otimização técnica da impressão. Traduzindo: uma economia possível de R$ 3 bilhões. Há também o polêmico tema do software livre. Nessa área, é mais do que conhecido o caso do Metrô paulista, que entre 1999 e 2005 economizou cerca de R$ 8 milhões só com o uso do Open Office, uma aplicação de escritório com editores de texto e planilhas de cálculo. É claro que para reduzir custos o exemplo mais disseminado é o do pregão eletrônico. O setor público brasileiro movimentou R$ 4 bilhões em compras públicas realizadas integralmente via internet em 2005, segundo apuração do projeto e-Licitações, índice mensal desenvolvido pela E-stratégia Pública. Na média, a economia fica entre 15% e 30%. De quebra, a transparência do processo diminui os casos de corrupção. Evidentemente, há algo de imponderável na transparência que a tecnologia pode oferecer. É complexo estimar o quanto custa o mau uso do dinheiro público ao Erário. O fato é que especialistas e órgãos internacionais repetem que o governo eletrônico é a único remédio que existe no mundo contra a corrupção e o gasto desnecessário. E foi graças a informações contidas em um sistema do governo federal que boa parte das denúncias de gastos nessa esfera ocorreram nos últimos dez anos. O Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) guarda 70 milhões de registros de quase duas décadas de gastos da União. Toda essa informação está disponível para ser acessada, embora seja necessário ter uma senha, hoje restrita a congressistas e altos funcionários públicos. Atualmente, o trabalho de divulgar as informações do Siafi é feito por abnegados como os da organização não-governamental Contas Abertas. "Nenhum governo gosta de ser fiscalizado", pondera Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG. O especialista sugere a criação de um Siafi para órgãos que ainda não estão no atual sistema. Há mais de 130 empresas estatais, que investem três vezes mais do que o orçamento da União, e não têm dados disponíveis. Existem outras brechas, como gastos de embaixadas brasileiras no exterior e organismos com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O governo eletrônico também facilita a vida do cidadão em centrais de atendimento que reúnem um grande número de serviços, embora ainda exista uma enorme barreira que é a exclusão digital da maioria da população. Uma das esperanças é que o desenvolvimento de alternativas como a TV digital e o celular possam servir para levar serviços eletrônicos. Um consórcio de empresas, inclusive, está desenvolvendo um projeto nesse sentido. O grupo - incluindo a TV por assinatura SKY, Globo e Poupatempo paulista - pretende oferecer a solicitação de serviços de um documento por meio da TV. Embora ainda restrito a uma elite, será um primeiro piloto de um caminho que pode efetivamente levar o governo eletrônico para a maioria da sociedade. Algumas facilidades já existem para os cidadãos. A idéia central do próprio Poupatempo paulista, exemplo mais divulgado, foi inspirada no pioneirismo baiano do SAC Cidadão, inaugurado há uma década, e hoje com mais de 76 milhões de atendimentos e reconhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU). A premissa básica - reunir diversos serviços públicos e emissão de documentos em um mesmo local - foi imitada em todo o país. Casa Cidadão (CE), Ganha Tempo (MT), Rio Simples (RJ) e Tudo Fácil (RS) são alguns exemplos. A idéia trouxe inclusive visitantes de toda a América Latina e Europa para conhecer as iniciativas brasileiras. Agora, a meta das centrais é expandir para cidades ainda não servidas e cada vez mais rumo ao meio virtual. Muitos desses Estados estão ampliando as centrais de atendimento para dezenas de outras cidades, em geral, por meio de parcerias público-privadas. "As empresas bancam todo o custo de implementação do quiosque e fazem o gerenciamento", diz Liliane Araújo e Souza, diretoria de desenvolvimento de projetos da superintendência de atendimento ao cidadão. A meta é atingir 417 municípios baianos. A expansão também precisa acontecer no meio virtual. "Sempre que um parceiro consegue colocar um novo serviço na internet é uma vantagem para o cidadão", lembra Liliane, que contabiliza hoje 31 órgãos parceiros nas esferas federal, estadual e municipal. O desafio é tentar levar um número cada vez maior de serviços para serem prestados eletronicamente. Há economia na troca, pois é sempre caro ter um funcionário que faça apenas atendimento presencial. O cidadão ganha comodidade, sem precisar se deslocar até a central de atendimento. Entretanto, o abandono total do meio presencial não será algo viável no curto prazo. Países como Canadá e Inglaterra, famosos pela excelência no governo eletrônico, tentaram migrar tudo para a internet e call centers. Não deu certo e voltaram atrás, pressionados pela população. De qualquer modo, a grande tendência é reduzir o presencial. Em uma década, há a expectativa de que o Brasil tenha 50% dos serviços públicos disponíveis no meio eletrônico. Se barreiras como a exclusão digital puderem ser minimizadas, existe a chance de o país ser cada vez mais um líder nesse setor.