Título: Transferência da produção ao exterior já preocupa
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Fonte: Valor Econômico, 22/03/2006, Opinião, p. A16
Há quase um ano, em maio de 2005, a reportagem do Valor identificou as primeiras reações do empresariado brasileiro à crescente dificuldade em competir com produtos chineses, diante dos custos de produção menores vigentes no país asiático e da política cambial, que mantém a cotação do dólar em baixa. Naquela época, constatou-se que indústrias nacionais de setores ameaçados pela competição com a China estavam importando diretamente produtos acabados e componentes feitos por indústrias chinesas. Os objetivos dessas empresas eram defender o mercado doméstico contra o avanço dos concorrentes chineses e tornar mais competitivos os produtos que elas fabricam no Brasil. Nas últimas semanas, um novo fenômeno tornou-se público - um movimento de aprofundamento da decisão anterior das indústrias. Agora, para driblar o impacto da valorização do real, empresas brasileiras dos setores de calçados e de confecções começam a contratar companhias na China ou até mesmo na Argentina para fabricar seus produtos. Sapatos e roupas saem das fábricas no exterior com as etiquetas das marcas brasileiras direto para terceiros mercados. Em alguns casos, esses produtos atendem também o mercado brasileiro. É uma maneira que essas empresas encontraram para continuar competitivas e manter seus clientes no exterior e no país. Para alguns especialistas, era esperado que as indústrias intensivas em mão-de-obra buscassem outros países para transferir sua produção - ou parte dela - já que são tradicionalmente "migratórias": em um primeiro estágio, ainda na década de 90, saíram das regiões Sul e Sudeste em direção ao Nordeste do país. As empresas começaram agora a importar para manter sua participação no mercado interno e para atender terceiros países. Também estudam abrir fábricas no exterior, em países como China, Colômbia ou Índia. Outra reportagem do Valor, publicada na edição da última segunda-feira, mostra que os ganhos de produtividade obtidos pela indústria brasileira no ano passado foram incapazes de reduzir o impacto do aumento do custo salarial causado pela valorização do real. Quando medido em dólares, o custo do trabalho por unidade produzida subiu 27% nos últimos 12 meses. Ponderada pela produtividade, a relação entre câmbio e salário pago na indústria caiu, na mesma comparação, 26%, segundo séries calculadas pelo Banco Central. Essa queda indica que a valorização do câmbio anulou a vantagem comparativa que o país poderia ter obtido com o aumento no volume de produção por funcionário. Pelos cálculos do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), a produtividade do trabalho na indústria - dada pela divisão entre a produção física e as horas trabalhadas no setor - cresceu 2,3% em 2005. Nesse cenário de empresas recorrendo à produção em outros países numa tentativa de manter sua fatia do mercado - não só internacional mas também doméstico -, seria oportuno se governo, economistas, empresários e trabalhadores pudessem debater se estamos ou não assistindo ao início de um processo de desindustrialização do país. O número desses casos registrados até agora pela imprensa é relativamente pequeno, mas o que preocupa é o eventual crescimento dessa tendência, já que as previsões gerais são de que não haverá mudança significativa no comportamento do câmbio no decorrer deste ano. O mercado financeiro entende que tornou-se anátema para as autoridades econômicas qualquer proposta de mudança na área cambial. Tanto que os especialistas do mercado prevêem que o dólar chegará ao fim de 2006 valendo algo em torno de R$ 2,20 - basicamente a mesma cotação que vigora neste início de ano -, segundo a última pesquisa do Banco Central, divulgada na segunda-feira. Ou seja, até dezembro a indústria manufatureira deve continuar enfrentando a perda do poder de competitividade, que já leva a uma redução no ritmo de exportação de determinados setores industriais. Talvez seja apressado falar em fuga de indústrias neste momento, mas o país não chegou ao estágio de poder dispensar fábricas se quer mesmo enveredar pelo caminho do crescimento continuado e sustentado.