Título: Poupança forçada com rótulos sociais
Autor: Edward Amadeo
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2006, Opinião, p. A16

O Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT) e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) têm patrimônio conjunto da ordem de R$ 160 bilhões. O FAT faz parte dos ativos da União, ou seja, quanto maior o seu valor, menor a dívida líquida do governo. É alimentado pela arrecadação do PIS-Pasep e pelo retorno dos investimentos do seu patrimônio. Os recursos são usados para custear o seguro-desemprego e ações do governo nas áreas de qualificação profissional, agricultura familiar etc. e servem de funding para os empréstimos do BNDES e demais bancos federais. O BNDES empresta esses recursos à Taxa de Juros de Longo Prazo (9%) mais as taxas de administração e risco dos empréstimos (em torno de 3%). Na soma, empresta a 12%, que corresponde a uma taxa real aproximada de 7%. O BNDES remunera o FAT pela TJLP. O Tesouro se financia de acordo com a Selic, ou seja, 16,5%. A diferença entre a Selic e a TJLP (7,5%) é o subsídio do Tesouro aos empréstimos do BNDES. Os recursos do FGTS estão em contas pessoais de trabalhadores alimentadas mensalmente por 8% do salário. Os trabalhadores podem sacar quando ficam desempregados sem justa causa ou outras situações especiais. O patrimônio do fundo é usado para financiar a compra de moradias e obras de saneamento. O fundo é remunerado pela TR, que em 2005 rendeu cerca de 3%, contra um CDI que rendeu 18%. Os cotistas do FGTS subsidiam as aplicações do fundo segundo a diferença entre o CDI e a TR, ou seja, 15%. O trabalhador se beneficia de ter acesso ao FGTS quando é demitido, mas sua poupança rende muito menos que a taxa de mercado. Ou seja, o contribuinte através do Tesouro e o cotista do FGTS têm seus patrimônios remunerados por taxas fixadas pelo governo (TJLP e TR) muito abaixo das taxas de mercado. Um dia, no passado, o governo e o Congresso acharam por bem que o financiamento de empresas, da casa própria e do saneamento básico deveria ser subsidiado com recursos tributários (PIS-Pasep) e pelo salário dos trabalhadores (FGTS). Ocorre que esse sistema produz enormes distorções. Aqui vão alguns exemplos. Por que empresas com grau de investimento, que podem se financiar no mercado internacional a Libor mais 2%-3%, como Petrobras e Vale do Rio Doce, devem ser financiadas com recursos subsidiados? Por que essas e outras empresas, que podem ir a mercado, concentram os empréstimos do BNDES? Se o FAT fosse remunerado pela mesma taxa a que se financia o Tesouro, a dívida pública seria menor, com o que o prêmio de risco sobre a dívida do governo cairia, contribuindo para a redução da taxa de juros de mercado, segundo a qual todas as empresas - não só as financiadas pelo BNDES - tomam recursos. Por que não usar o FAT para reduzir a dívida do Tesouro e repartir os ganhos entre todas as empresas que seriam beneficiadas com juros mais baixos? Alternativamente, a alíquota do PIS poderia ser reduzida, com o que os lucros após pagamento de impostos das empresas aumentariam e, assim, sua capacidade de investimento. Por que o investimento financiado pelo BNDES é de melhor qualidade que o investimento de todas as empresas que deixariam de recolher o PIS? O subsídio do cotista do FGTS serve para baratear o custo da casa de seu vizinho, ou dele mesmo, quando toma um empréstimo na Caixa Econômica. E se no lugar da Caixa, os recursos do FGTS fossem alocados em fundos imobiliários ou outros tipos de investimentos? Seria mais caro comprar uma casa pois os juros de mercado são mais altos que os juros da Caixa. Mas se o dinheiro é do próprio trabalhador, dá no mesmo porque ele vai ter rendimentos muito maiores também. Quando o governo permitiu, vários cotistas do FGTS compraram ações da Petrobras e da Vale, que valorizaram muito nos últimos anos. Com esses investimentos o cotista compraria uma casa muito melhor do que se tivesse tomado empréstimo na Caixa.

Por que empresas com grau de investimento, que podem buscar crédito no mercado, devem ser financiadas com recursos subsidiados?

Essencialmente, o que FAT e FGTS fazem é forçar o poupador (contribuinte ou cotista) a investir onde o legislador (que inventou esses fundos no passado) acha que devem ser investidos. Trata-se de uma reminiscência da fase dirigista de desenvolvimento, em que o governo sabe melhor que o indivíduo ou os fundos de pensão e investimento onde investir seu dinheiro. E da crença de que o governo aloca recursos melhor que o mercado. E tudo isso com rótulos sociais - Fundo de "Amparo" e Fundo de "Garantia" - como se não fossem os mesmos trabalhadores e empresas que estão dos dois lados (credor e devedor) dos fundos. O Brasil tem um mercado de capitais pequeno, taxa de juros elevada e baixa taxa de poupança. E esses males são vistos como justificativas para a existência dos empréstimos do BNDES e da Caixa. Mas o argumento pode se virado ao avesso. A existência do FAT e do FGTS é que contribui para essas três coisas. Como haver mercado de capitais se as empresas podem se financiar a juros subsidiados? Como ter juro baixo se o Tesouro tem que subsidiar a produção? E como ter taxa de poupança elevada se o poupador é forçado a ser remunerado a uma taxa inferior à taxa de mercado? Há várias saídas possíveis para acabar com essas distorções. Talvez a melhor fosse a redução gradual dos dois fundos, diminuindo gradativamente as alíquotas de recolhimento do PIS e do FGTS. O custeio do seguro-desemprego seria preservado. A redução do PIS diminui a carga tributária das empresas, reduzindo a inflação e aumentando o investimento. A do FGTS, o custo de contratação de trabalhadores, o que favorece o emprego formal. As outras soluções mantém as contribuições sobre o faturamento e a folha. Uma seria deixar que esses recursos pudessem ser administrados por instituições financeiras e fundos de investimentos segundo critérios de alocação de mercado. A decisão seguinte é se o contribuinte e o cotista do FGTS continuariam subsidiando a produção, caso em que os recursos renderiam mais ou menos o que rendem hoje. Ou se os empréstimos seriam investidos à taxa de mercado, com a vantagem de que a taxa média de juros cairia porque haveria mais oferta de recursos. A terceira alternativa seria uma variação da segunda, sem subsídio, mas o FAT e o FGTS seriam transformados em fundos de previdência, o FAT em apoio ao sistema de seguridade social e o FGTS como um sistema de capitalização com contas individualizadas. Esse sistema tem a vantagem de elevar a poupança de longo prazo da economia e reduzir o desequilíbrio da Previdência. Evidentemente, essa alternativa altera os critérios de saque do FGTS. Seja qual for a escolha, o importante é libertar a poupança de modo a reduzir a taxa de juros, desenvolver o mercado de capitais e elevar a taxa de poupança privada.