Título: Bush terá desafio externo ainda maior
Autor: Richard Haass
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2004, Especial, p. A12

Artigo EUA estão sobrecarregados militarmente, endividados, divididos e perderam apoio no mundo Ao contemplar seu segundo mandato, George W. Bush defronta-se com muito mais dificuldades, e dificuldades mais graves, do que quatro anos atrás. A primeira razão disso é o estado objetivo do mundo, com uma série de problemas - do Iraque à Coréia do Norte, passando pela Aids -, que exigem atenção urgente. A segunda é a atual condição dos EUA. O país continua sendo o ator dominante no mundo, mas também está excessivamente sobrecarregado do ponto de vista militar, endividado, internamente dividido e internacionalmente impopular. Tudo isso faz indagar por que Bush parecia tão insistente em se manter no cargo. Os EUA estão engajados em pelo menos três conflitos. Primeiro, contra o terrorismo. Embora o número original de militantes da Al-Qaeda possa ter diminuído, alguns de seus líderes (entre eles, o próprio Ossama bin Laden) continuam em liberdade, e muitos novos membros aderiram à organização. Bush poderá se ver diante de grupos que possuem não apenas estiletes e acesso a aviões, mas também material nuclear ou, o que seria pior, uma arma nuclear. No Iraque, os EUA e seus aliados estrangeiros continuam, lentamente e contra resistências, a treinar iraquianos para que cuidem de sua própria segurança. Alcançar estabilidade não será fácil, assim como realizar eleições que venham a ser aceitas como legítimas pelos iraquianos e pelo mundo. No Afeganistão, a tarefa de criar um Estado moderno é prejudicada pela decisão inicial de limitar o papel dos EUA na edificação do país. O governo central é fraco, os líderes guerreiros tribais são fortes e a produção de papoula é recorde. É improvável que esse esforço, mais do que aqueles contra o terror ou no Iraque, sejam concluídos antes que Bush deixe a Presidência. Os maiores problemas, no entanto, podem estar em outros locais, na Coréia do Norte e no Irã. Há informações de que a Coréia do Norte possui entre seis e dez armas nucleares, ou pelo menos o combustível para construir essa quantidade. O Irã está mais adiantado no caminho do enriquecimento de urânio do que se julgava. Qualquer dos dois regimes, se dotado de armas nucleares, pode se transformar no fator de desequilíbrio na região, fazendo com que países vizinhos decidam tomar o mesmo caminho. Além disso, tanto um como o outro poderia vazar material físsil para terroristas. O presidente americano terá de decidir com urgência o que pode ou não tolerar. Há ainda a questão de israelenses e palestinos. Onde antes havia um "processo de paz", há agora pouca paz e ainda menos processo. Bush precisará descobrir o que os EUA podem fazer para assegurar que a política de Ariel Sharon, de retirada dos israelenses de Gaza não se limite à Faixa de Gaza, e que Gaza não se transforme em um Estado falido e sem lei. Um fracasso não apenas tornaria muito mais difícil para os EUA incentivar reformas democráticas no mundo árabe ou frear o recrutamento de terroristas, como prejudicaria sua reputação em todo o mundo. Darfur, no Sudão, é uma tragédia humana que continua em andamento enquanto o mundo debate se o que está acontecendo é genocídio. A questão é o que mais os EUA e outros países estão dispostos a fazer, cessar a matança ou ajudar vidas arrasadas. No que se refere às grandes potências, a questão com maior possibilidade de causar danos reais é a relação China-Taiwan. Nessa frente, está ficando mais difícil para os EUA conciliar sua política de "uma só China" com suas obrigações em relação a Taipé na esfera de segurança. Se Taiwan insistir em mais simbolismo de soberania, a China pode ir à guerra. Partir em defesa de Taiwan poderia envenenar as relações dos EUA com uma das potências emergentes no mundo e prejudicar as chances de resolução aceitável do problema norte-coreano. Não fazê-lo poderia levantar questões fundamentais sobre a confiabilidade americana e passar a impressão de que a China substituiu os EUA como força dominante na região. A Rússia é um problema em larga medida criado por ela mesma. Os russos estão combatendo, e possivelmente perdendo, uma cara guerra na Tchetchênia. O álcool e a Aids arruinam a população e a democracia recuou à medida que o presidente Vladimir Putin aproveita a alta do petróleo e o medo do terrorismo para consolidar seu poder. Mas os EUA precisam do petróleo russo, assim como necessitam da cooperação russa para lidar com o Irã. Um último elenco de problemas exige menção. São - como Donald Rumsfeld poderia qualificá-los - os desconhecidos que desconhecemos. O mais evidente deles é outro ataque terrorista de enormes proporções que deixe os EUA atordoados, econômica, psicológica e politicamente. Pode haver assassinatos. Imaginemos as dificuldades de construir o Afeganistão sem Hamid Karzai, o Paquistão sem Pervez Musharraf ou o Iraque sem não apenas Iyad Allawi, mas grande parte de sua equipe. A saída de cena de Fidel Castro também poderá resultar em instabilidade que alguns analistas nos EUA talvez achem difícil de ignorar. Enfrentar esse elenco de problemas já seria difícil se os EUA estivessem na melhor forma. Mas não estão. A economia cresce a uma taxa razoável, mas o fundamento desse crescimento é vulnerável. Quando Bush concorreu à Presidência quatro anos atrás, o Orçamento registrava um superávit de US$ 236 bilhões. Agora, o déficit anual é superior a US$ 400 bilhões. Os apelos pela educação dos gastos federais exercerão pressões sobre os recursos disponíveis para defesa, ajuda externa, combate à Aids e segurança interna. Some-se a isso o fato de que o déficit em conta corrente deve passar de US$ 600 bilhões neste ano, ou cerca de 5,5% do PIB. Tudo isso deixa a economia americana à mercê de banqueiros da Ásia e de outras regiões, que acumularam enormes posições em dólar. Como disse Herb Stein, o que não pode durar para sempre não o fará. Um dia de juízo final pode se fazer sentir nos próximos quatro anos. Se isso ocorrer, Alan Greenspan ou seu sucessor terá de subir sensivelmente os juros. O déficit cresceu tanto, em parte, por causa do custo com defesa e segurança. Relacionado a isso há o fato de os EUA estarem ativos militarmente. Cerca de 135 mil soldados estão no Iraque e 15 mil no Afeganistão. Os EUA teriam dificuldades para atender as demandas de uma crise na península coreana. Ataques preventivos contra um país com aspirações nucleares são uma coisa, mas é difícil imaginar como os Estados Unidos poderiam engajar-se numa guerra em larga escala até mesmo com uma potência de porte médio, nesta altura dos acontecimentos. Algo que agrava a situação dos EUA é a dependência dos americanos em satisfazer sua demanda de energia. Os Estados Unidos atualmente importam cerca de 12 milhões de barris de petróleo por dia, ou mais da metade do seu consumo. Não há razão para acreditar que, no curto prazo, o preço do petróleo cairá de seu patamar de US$ 50 por barril. Além disso, o equilíbrio entre oferta e demanda mundial está apertado, de modo que não seria necessária grande instabilidade em um produtor médio (por exemplo, Venezuela ou Nigéria, para não mencionar a Arábia Saudita) para que o preço dispare a órbitas estratosféricas. Evidentemente, nem tudo será sombrio e apocalíptico. No geral, as relações com as outras potências - China, Japão, Rússia e Índia - nunca estiveram melhores. Além disso, Índia e Paquistão recuaram da beira do abismo e os laços entre os dois países estão melhorando. O Leste Asiático progride em sua recuperação econômica. A África do Sul está em condição relativamente boa, assim como parte da América Latina. E a condição dos EUA deve ser vista em perspectiva. A despeito de suas debilidades, os Estados Unidos continuam sendo a potência mundial. A opinião pública americana apóia um papel mundial ativo, a despeito dos custos. Bush pode se beneficiar com simples ajustes no tom e estilo de sua diplomacia. Que itens deveriam ser alçados ao topo da agenda de Bush? Permitam-me sugerir nove tópicos. Êxito no Iraque: Isso não exige transformar o Iraque no país dos nossos sonhos. Significa, sim, transformá-lo num país que funcione. A eleições terão de ser realizadas conforme programado e o treinamento de forças de segurança iraquianas precisará ser acelerado. Talvez seja a um só tempo desejável e necessário elevar o contingente de tropas americanas na reta final que antecede as eleições de janeiro, associando tais aumentos de efetivos com uma declaração de que haverá reduções da presença de soldados americanos após a eleição. Os EUA também teriam um posicionamento inteligente se declarassem publicamente que não estão interessados em manter bases no Iraque após a saída de suas forças militares. Seria preciso evitar marcar uma data arbitrária para retirada dos soldados, o que exigiria que as forças partissem sem criar uma estabilidade relativa. Também é preciso evitar a aparência de que os EUA estão sendo tirados do Iraque, como ocorreu na Somália. Envolver-se em negociações com a Coréia do Norte e o Irã: Os EUA, com outros países, deveriam pôr na mesa ofertas abrangentes tanto para a Coréia do Norte como para o Irã. Nos dois casos, as ofertas deveriam incluir garantias de segurança e incentivos políticos e econômicos em troca da desistência de ambições nucleares. As ofertas deveriam também sinalizar o preço a ser pago caso as preocupações mundiais não forem satisfeitas. Duas outras boas idéias: acelerar esforços parar manter em segurança os materiais nucleares russos "à deriva", e fazer com que as nações do "clube nuclear" assumam em consenso que nenhum outro país deveria ter condições de obter acesso a combustível nuclear capaz de ser usado como um armamento. Retomar os esforços por paz no Oriente Médio: Assegurar que uma saída israelense de Gaza seja efetivada, deixando para trás algo estável, exigirá a colaboração americana, européia e egípcia. Assegurar que a diplomacia tenha início, em vez de terminar com Gaza, exigirá que os Estados Unidos digam para onde deveriam levar o esforço de paz, e demonstrar maior envolvimento para chegar lá. Um bom começo seria a nomeação de um enviado de alto escalão que desfrute de apoio da Casa Branca. Evitar uma crise em Taiwan: Isso significa continuar pressionando os líderes de Taiwan a não irem muito longe, paralelamente a continuadas advertências ao governo chinês para que persiga seus objetivos pacificamente. Deveria ser deixado bem claro aos dois lados que eles não se beneficiariam de uma crise criada por eles mesmos. Iniciativa Doha: Um novo acordo na Organização Mundial do Comércio (OMC) seria excelente para as economias tanto americana como mundial. Os EUA deveriam dar o exemplo, mediante a eliminação de todos os seus subsídios, quotas e tarifas remanescentes. Ajudar Darfur: Os EUA deveriam disponibilizar informações de seus serviços de inteligência, apoio logístico, treinamento e equipamentos à União Africana, e pressionar por sanções "cirúrgicas" contra líderes sudaneses. Restaurar os vínculos transatlânticos: Uma ampliação do fosso transatlântico não atenderá a interesses dos EUA nem da Europa. Infelizmente, não há uma solução rápida disponível. Os europeus (leia-se franceses e alemães, ou, ainda melhor, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, Otan) precisam encontrar alguma maneira de colaborar significativamente no Iraque. Um fracasso nesse país seria tão prejudicial aos europeus quanto ao resto do mundo civilizado. Manter o rumo no combate ao terror: Continuar a perseguir terroristas e frustrar seus esforços de recrutamento, mas continuar investindo na segurança do território americano. Reduzir a presença americana no Iraque será positivo, assim como ampliar a visibilidade do empenho dos EUA na questão palestina. Os EUA deveriam também manter seus esforços para incentivar reformas política, econômica e educacional no mundo árabe. Pôr a casa em ordem: Os EUA não continuarão sendo uma grande potência por muito tempo se ocorrer uma erosão dos fundamentos econômicos de seu poder. O país precisa conter seus gastos domésticos, inclusive atacando a insustentabilidade da manutenção dos benefícios de Seguridade Social e sistema de saúde para idosos (Medicare). Os EUA precisam também desenvolver uma política energética séria e responsável. O único debate necessário é sobre o mix apropriado de melhoras obrigatórias de eficiência, investimentos em combustíveis alternativos e novas taxas. Todos esses desafios vão se somar, tornando os EUA um país mais contido. Novas guerras preventivas são menos prováveis; Bush estará superatarefado. Observadores em todo o mundo sem dúvida encararão esse fato positivamente. Mas deveriam ser cautelosos com seus desejos. O mundo é um lugar muito perigoso e, ao contrário do que acontece no mercado econômico, não há uma mão invisível garantindo desfechos otimizados. Como bem sabe Bush, somente os EUA podem desempenhar esse papel a contento.