Título: A rica burocracia do Nordeste
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 23/03/2006, Opinião, p. A15

Lá se vão alguns anos, criou-se no sistema fiscal brasileiro a figura das transferências federais aos Estados com o objetivo de tirar parte da renda dos mais ricos e repassá-la aos governos estaduais mais pobres, aqueles cujo PIB está abaixo da média nacional. Ou seja, recebe mais proporcionalmente aquele que produz menos em termos per capita. Àquilo deu-se o nome de Fundo de Participação dos Estados (FPE), alimentado por tributos recolhidos com o Imposto de Renda e o IPI. O objetivo era claro: promover maior equidade na distribuição da renda de modo a que, com o tempo, o dinheiro aplicado nos Estados mais pobres em educação, saúde, saneamento e em outros serviços e produtos os colocasse em patamar de renda próximo dos mais ricos. Qualquer mortal que se disponha a olhar os dados mais corriqueiros da evolução do PIB nacional e de sua distribuição pelo país verifica que a tal equidade continua longe. Na década de 90 (de 1991 a 2000, a valores constantes de 2000) a participação média do PIB regional no PIB nacional das várias regiões foi assim distribuída: 9,51% da Região Centro-Oeste; 4,49% da Região Norte; 12,58% da Região Nordeste; 17,26% da Região Sul e 56,15% da Região Sudeste. O Sudeste continua transferindo renda para outras regiões, mas o desequilíbrio se mantém. A pergunta que a sociedade deveria se fazer - em especial, os habitantes das regiões com PIB menos expressivo - é a seguinte: se o produto não cresceu o necessário para nivelar a renda regional aos níveis da renda do Sudeste, se ainda há problemas sérios na área social e de infra-estrutura, então para onde tem ido o dinheiro transferido dos Estados mais ricos para os mais pobres? Resposta: para a burocracia pública dos Estados mais pobres. Boa parte do esquema de transferência de renda regional tem sido apropriada por uma "elite" de burocratas no Norte e no Nordeste do país que enriquece às custas da perpetuação do empobrecimento, de ignorância, da má nutrição e da insalubridade habitacional da população local. A assertiva tem base na forte evidência levantada pelo estudo de quatro economistas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, todos ligados ao Centro de Estudos de Política e Economia do Setor Público (CEPESP), financiado com recursos da GV Pesquisa. O texto "Transferências Verticais e a Apropriação de Recursos Por Parte da Burocracia: o Caso dos Governos Estaduais no Brasil" acaba de sair do forno. Seus autores, João Moura Neto, Nelson Marconi, Paulo Eduardo Modelo Palombo e Paulo Roberto Arvate, conseguem demonstrar a relação existente entre as transferências do FPE e os altos benefícios, além dos salários, incluindo a aposentadoria integral, percebidos pelos altos funcionários públicos nas regiões de menor renda. Ao contrário dos exercícios mais comuns - que procuram relacionar os níveis de salários estaduais a partir simplesmente do levantamento de gastos públicos com pessoal em cada unidade federativa - eles trabalharam os dados a partir de uma série de cortes na busca por estabelecerem uma comparação a mais correta possível entre os salários do setor público e do setor privado nos diferentes Estados. "Em todos os Estados e em todas as regiões, os gastos com salário estão em um patamar acima de 70% das despesas totais. Por outro lado, quando analisamos a capacidade da burocracia em gerar prêmios de salário em relação aos salários pagos no setor privado, a questão muda de perfil", diz o estudo, referindo-se ao destino dos recursos do FPE no Norte e no Nordeste do país, em especial. Também descobriram evidências semelhantes no Centro-Oeste, mas atribuem boa parte disso ao peso do Distrito Federal na região. No caso do estudo em questão, a diferença salta aos olhos. A tabela mostra claramente esse diferencial, considerando os diversos tipos de cortes com os quais trabalhou o quarteto de economistas. Chega, como se vê, a 30% na Região Norte quando se compara os salários dos funcionários estaduais estatutários com os dos empregados do setor privado manufatureiro. Esta é, aliás, a melhor proxy entre os dois setores, para salários mais baixos. Nesta mesma classificação, o diferencial a favor do setor público é de 16,4% na Região Centro-Oeste e de 7,2% no Nordeste, caindo para 1,7% no Sudeste. No Sul, a relação é negativa, significando que os salários do setor público são inferiores aos do setor privado. Quando a comparação considera todos os funcionários públicos (estatutários mais CLT) e todos os empregados privados (formal e informal), a diferença de rendimentos a favor do setor público é de 15,7% no Norte, de 10,5% no Nordeste e de 8,9% no Centro-Oeste. "A inexistência de um sistema de controle dos gastos criou, neste caso, uma burocracia de ricos no Norte e no Nordeste, e o FPE funciona como um Robin Wood às avessas", comenta Paulo Arvate. A solução, existente há anos em outros países, é um sistema de avaliação e de fiscalização do destino dado ao dinheiro público. Na Austrália, por exemplo, uma autarquia está encarregada de traçar a "fronteira de possibilidades de produção" que enquadra os resultados do setor público, nas diversas áreas, a metas transparentes e torna os funcionários responsáveis pelos resultados. Tudo depende de vontade política e coragem para romper com o corporativismo que emperra o avanço do país. Quem sabe o Congresso Nacional de 2007 não resolve isso?