Título: Jornalista aproxima a China do Brasil
Autor: Cynthia Malta
Fonte: Valor Econômico, 23/03/2006, EU &, p. D6

Internacional Com olhar pessoal, ex-correspondente em Pequim destrincha economia e política

Em maio de 2004, quando o presidente Lula fazia sua primeira visita à China na condição de chefe de Estado, reencontrei Cláudia Trevisan, recém-chegada a Pequim para trabalhar como correspondente da "Folha de S. Paulo". Para minha surpresa, Cláudia, que já havia sido correspondente do Valor em Buenos Aires, parecia adaptada àquele país, tão longe e diferente do nosso. Havia alugado um apartamento novinho e todo equipado, aberto conta em banco, e já dava dicas de restaurantes bacanas para se comer e lojas que valiam a pena visitar. Com seu costumeiro bom humor, me contava suas confusões de estrangeira naquela terra de língua estranhíssima. Em uma de suas primeiras missões como repórter, Cláudia não conseguia que o taxista a levasse ao local da entrevista. Estava nervosa, atrasadíssima e, quando finalmente chegou ao endereço certo, descobriu que estava sem dinheiro. Entrou correndo na sala cheia de jornalistas, encontrou um que falava espanhol e pediu dinheiro emprestado para pagar o táxi. "Nunca mais encontrei o jornalista que me emprestou o dinheiro", lembrava Cláudia, rindo. A correria serviu de lição. Em vez de carregar papeizinhos com os endereços escritos em chinês, que acabavam perdidos, Cláudia contratou Joana, uma simpática universitária chinesa que falava português e servia de tradutora. Quando não estava acompanhando Cláudia, Joana atendia o celular e, pronto, podia resolver diversos problemas - e o mais corriqueiro era falar com taxistas desorientados. Esse espírito prático e bem-humorado, combinado a um olhar curioso e, ao mesmo tempo, generoso, está presente no livro "China - O Renascimento do Império", editado pela Planeta. O leitor que buscar informações sobre história, economia e política da China não vai se decepcionar. Mas, talvez, o lado mais saboroso do livro esteja nos relatos pessoais de Cláudia. Sua exploração nos "hutongs" de Pequim é um deles. Construídos durante as três últimas dinastias do Império Chinês, entre 1271 e 1911, os "hutongs" serviram de moradia da elite até o século XX- hoje são endereço de família mais pobres. "Topar com um casal que anda de pijama ao cair da tarde, um jovem que corta o cabelo na rua ou uma dona de casa que cozinha na calçada são cenas corriqueiras nos 'hutongs' de Pequim", escreve Cláudia, que entrevistou Li Yonghua, que vive no mesmo "hutong" onde nasceu, há 43 anos. Apesar do desconforto, Li não quer deixar a casa. A indenização paga pelo governo, que nos últimos 27 anos demoliu centenas deles, não é suficiente para comprar um imóvel próximo do centro de Pequim, Mas não é só isso. "Eu gosto da cultura da Pequim antiga. A proximidade com os vizinhos aqui é grande e em um apartamento nós não poderíamos nos comunicar da mesma maneira", diz ele. Cláudia perguntou a várias pessoas, pobres e de classe média, como faziam quando ficavam doentes. "Todas me responderam que tinham de pagar pelo tratamento." A observação da repórter é comprovada por dados estatísticos. Em 1981, no período inicial do processo de abertura política, 71% dos chineses tinham acesso a hospitais públicos. Em 2004, menos de 10% da população tinham alguma forma de seguro-saúde. Cláudia, que trabalhou a maior parte do tempo em Pequim e Xangai, conseguiu visitar o Tibete. O governo chinês havia recomendado que Cláudia e seus companheiros de viagem, quatro jornalistas e um professor, não tomassem banho por uma semana para evitar doenças. A obediência durou pouco. No dia seguinte, Cláudia e seus colegas cochichavam no café da manhã: "Eu tomei banho" e o outro respondia "Eu também". Ninguém ficou doente. O Tibete, ocupado por Pequim desde 1951, continua sendo uma questão paradoxal para a China. O Partido Comunista é ateu e o budismo está no centro da vida tibetana. O Tibete vem recebendo generosos investimentos chineses em infra-estrutura e o crescimento anual da economia tem sido de 12%. Cláudia viu de perto o risco de os tibetanos acabarem vendendo a alma ao diabo. Ela perguntou a um tibetano especialista nas diferentes correntes do budismo local a qual ele pertencia. A resposta: "Antes eu era religioso, mas depois que eu me tornei funcionário público, eu só sigo o partido". Esse forte espírito de hierarquia e obediência e a falta de liberdade, na visão da repórter, formam um grande ponto de interrogação no futuro da China. Esse Estado policial permitirá o surgimento de uma sociedade na qual a iniciativa individual floresça? O mundo estará de olhos pregados na China para saber a resposta.