Título: Taxa de juros, taxa de câmbio e metas de inflação
Autor: Franklin Serrano
Fonte: Valor Econômico, 24/03/2006, Opinião, p. A23

Para os defensores e muitos de seus críticos, a política macroeconômica implementada no Brasil nos últimos anos contém dois elementos centrais: o regime de câmbio flexível e o sistema de metas inflacionárias no qual a taxa de juros é fixada com o intuito de controlar a demanda agregada e, através dela, a inflação. Os defensores argumentam que esta é "a melhor combinação de políticas macroeconômicas que o país já teve". Para os críticos, está condenando o país a um crescimento medíocre. O problema com estas duas visões é que o Brasil não tem propriamente um regime de câmbio flexível e os juros não são realmente fixados com o objetivo central de conter a demanda agregada. Comecemos pelo suposto regime de câmbio com livre flutuação. Em tal regime o governo não compra nem vende divisas - as flutuações das reservas são mínimas. A taxa de juros nominal fixada pelo Banco Central é menos instável e não tem qualquer relação mais sistemática com a taxa de câmbio, já que é fixada para controlar a demanda agregada e não o preço do dólar. Nada disso se observa no Brasil de meados de 1999 até o início de 2006. Houve grandes flutuações e substancial acúmulo de reservas internacionais (de cerca US$ 41 bilhões a algo em torno de US$ 56 bilhões). A taxa de juros tem flutuado bem mais que a média mensal do câmbio e há forte relação do diferencial entre a taxa de juros nominal interna e a taxa de juros externa (juros americanos mais risco país do Brasil) e o nível da taxa de câmbio. A mudança deste diferencial de juros interno e externo com freqüência precede as movidas do câmbio. O regime cambial que existe mesmo no Brasil é de flutuações administradas (especialmente via juros) e se encaixa bem na categoria mais administrada e menos flexível (ou mais "suja") da bem-humorada taxonomia de Carmen Reinhart ("The Mirage of Floating Exchange Rates", American Economic Review, May, 2000), chamada de "quase-paridade mal disfarçada sem credibilidade". Vejamos agora como funciona realmente o sistema brasileiro de metas de inflação e por que a taxa de juros não é fixada com o objetivo de controlar a demanda agregada. Em primeiro lugar, o impacto da taxa de juros na demanda agregada é altamente instável e difícil de prever, em parte porque o investimento privado em máquinas e equipamentos não responde diretamente aos juros e sim ao crescimento esperado da demanda, e em parte porque o forte efeito da variação dos juros sobre o consumo varia muito de acordo com a disponibilidade de crédito (inclusive consignado) e o crescimento da massa de salários. Em segundo lugar, a demanda não afeta diretamente o crescimento dos preços dos produtos importados e exportáveis, que seguem o câmbio e as variações dos preços internacionais, nem as tarifas de serviços públicos privatizados, que são reajustados por contratos indexados (atrelados a um índice de preços muito afetado pelas flutuações cambiais). Por isso há no Brasil uma forte relação entre desvalorizações cambiais e aumento dos preços por atacado e monitorados. Em terceiro lugar, no Brasil a demanda não tem tido impacto mais sistemático nem sobre os chamados preços livres. Estudos econométricos não têm conseguido estabelecer uma relação sistemática entre pressão de demanda e variação dos preços livres. E de fato, num prazo que não pode ser muito longo, sob pena de inviabilizar a produção, os preços de todos os bens produzidos - mesmo dos setores mais competitivos - também são determinados pelos custos e, portanto, muito afetados, direta e indiretamente, pelo impacto do câmbio nas tarifas e preços por atacado. No gráfico, vemos como os preços livres, e mesmo os preços dos produtos não exportáveis, oscilam muito, mas respondem, com uma defasagem de poucos meses, às variações do câmbio. Julia Braga (doutoranda do IE-UFRJ) estimou que cada aumento de R$1 na taxa de câmbio elevou a inflação dos preços livres em 0,84% ao mês de 2002 a 2005. Portanto, a inflação sistemática no Brasil atual é fundamentalmente de custos (e não de demanda) e pode ser inteiramente explicada por choques de oferta (tanto do câmbio quanto de altas dos preços internacionais das commodities e do petróleo) e pela inércia, que é apenas parcial, dada a desindexação formal dos salários e o baixo poder de barganha dos trabalhadores. Combinando a forte relação entre a taxa de juros e o câmbio com o fato de que a inflação no Brasil atual é fundamentalmente de custos (e não de demanda) e é muito afetada pelo câmbio, podemos entender como o sistema de metas de inflação brasileiro realmente funciona. O Banco Central maneja o diferencial de juros para valorizar o câmbio (e às vezes para evitar desvalorizações) e levar a inflação para perto da meta, independentemente do governo não saber direito qual será o impacto exato na demanda ou mesmo se a demanda terá algum efeito permanente sobre os preços livres. Assim, o câmbio valorizado não é um subproduto indesejável da política monetária e sim o instrumento principal de controle da inflação de custos. Neste contexto, o nível absurdo da taxa de juros interna parece ser um resultado inevitável da curiosa estratégia de implementar um regime com metas de inflação fortemente declinantes de meados de 1999 até o início de 2006, um período no qual de acordo com índices calculados pelo próprio Ipea os níveis de preços internacionais das commodities subiram 72% e do petróleo e derivados 283%!