Título: Carne se consolida como front político de Kirchner
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 27/03/2006, Internacional, p. A11

Argentina Presidente institui símbolo da 'luta contra privilégios da elite'

O preço da carne, que em situações normais é visto como uma consequência do comportamento do mercado, se transformou nas últimas semanas em mais uma das batalhas políticas envolvendo diretamente o presidente argentino, Néstor Kirchner. Preocupado com o impacto causado pelo aumento do produto, que na Argentina é consumido também pela população pobre, Kirchner tem abordado o problema de maneira ideológica, como uma espécie de defensor do direito de que todos seus cidadãos possam comer carne, contra a ganância de setores que estariam se beneficiando com os aumentos. "Basta de setores privilegiados", exclamou o presidente em discurso em uma localidade da Grande Buenos Aires visitada anteontem por ele e pela presidente do Chile, Michelle Bachelet. "Se a carne está cara, que baixem o preço para o povo, que o povo me ajude para que todos os argentinos tenham acesso [ao produto]", afirmou. Na tentativa de deter a alta, no último dia 8, o governo proibiu por 180 dias as exportações de carne. As autoridades também estão fazendo uma campanha, com cartazes espalhados pelas ruas, para que a população boicote o produto. Para dar o exemplo, a carne bovina foi tirada do cardápio servido aos funcionários no refeitório da Casa Rosada, sede do governo. Na ofensiva, o presidente tem contado com apoio de grupos de desempregados, que já haviam realizado protestos quando Kirchner pediu, em 2005, boicote aos combustíveis da Shell, depois de a empresa aumentar preços. Semana passada, manifestantes protestaram em frente à sede do mercado de Liniers, principal centro de comercialização de gado vivo do país, e da SRA (Sociedade Rural Argentina), a mais importante entidade do setor agropecuário, sob o slogan "para que as vaquinhas voltem a ser nossas". Às vésperas do aniversário do golpe de 1976, que fez 30 anos na sexta-feira, um dos dirigentes presentes, Jorge Aragón, disse que "a Sociedade Rural e os militares se dedicaram a derrubar presidentes na Argentina, e com esta denúncia viemos dizer que o povo e o governo não vão mais permitir isso". "Segundo a percepção popular, os produtores de carne ainda são a faixa mais rica da população", afirmou o historiador José Ignacio Garcia Hamilton, lembrando que os pecuaristas ainda são identificados pela população em geral como a "elite" do país, apesar de a lucratividade obtida hoje com outros produtos, como a soja, ser maior. Mas, para Hamilton, a escolha dos pecuaristas como inimigos serve à retórica populista do presidente. "Esta é uma das razões pelas quais Kirchner se mete nessa briga." Entre os produtores, o veto às exportações foi recebido com críticas. O argumento é que a medida pode ter um efeito de curto prazo, aumentando a oferta de carne no mercado interno e consequentemente baixando o preço. Mas no médio e longo prazo a tendência é que a menor lucratividade faça com que alguns abandonem a atividade, diminuindo a oferta. "O governo deve estar mal assessorado, está tomando medidas que vão contra o que há de mais básico para diminuir o preço de um produto, que é aumentar a oferta", disse Marcelo Fielder, secretário de Ação Política da SRA. "A demanda está muito forte e temos o mesmo estoque de gado de 20 anos atrás", argumenta Pablo Kirjluk, porta-voz do Consórcio de Exportadores de Carne, entidade que reúne 80% das empresas que realizam embarques ao exterior. Segundo ele, o rebanho argentino é hoje de 54 milhões de cabeças para uma população de cerca de 40 milhões de pessoas. O "problema" é que cada argentino come, em média, 61 kg de carne por ano - o brasileiro come 30 kg. Kirjluk diz que o veto às exportações deve fazer a Argentina perder mercados, e a mensagem enviada aos compradores é que o país não é um provedor confiável. No plano interno, a proibição pode afetar 10 mil trabalhadores que estão empregados em frigoríficos dedicados à exportação, e esse é um dos fatores que levam os empresários do setor a ter esperanças de poder reverter a medida. O maior frigorífico argentino é o Swift, comprado em 2005 pelo brasileiro Friboi. Um porta-voz da Swift diz que a situação é "preocupante" e disse que a atividade nas fábricas que processam carne cozida e embalada a vácuo é lenta: os funcionários só trabalham para atender pedidos que haviam sido feitos e aprovados antes do veto. O funcionário não quis comentar a situação da empresa em meio a negociações com o governo para derrubar o veto. Mas se a situação não mudar depois de atendidos esses pedidos, a perspectiva é que a atividade cesse totalmente.