Título: Reações opostas a um movimento favorável
Autor: Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti
Fonte: Valor Econômico, 27/03/2006, Opinião, p. A13

Aproveitando-se das excepcionais condições internacionais, que conduziram a elevados superávits nas contas correntes e a ingressos de capitais que permitiram a acumulação de reservas, praticamente eliminando os riscos associados ao balanço de pagamentos, o secretário do Tesouro iniciou um processo inteligente de alongamento da dívida pública. A isenção de impostos na compra por estrangeiros de títulos públicos, e a recompra de até US$ 20 bilhões da dívida pública externa produzem efeitos positivos. Primeiro, os estrangeiros têm elevado apetite por títulos de prazos de vencimentos mais longos, reduzindo suas taxas de juros. Segundo, estimula o ingresso de capitais, estabilizando o câmbio e contribuindo para baixar a inflação. Terceiro, a recompra da dívida pública externa reforça estas tendências, derrubando os prêmios de risco e atraindo um fluxo adicional de capitais. Foram libertadas forças importantes que permitem um alongamento ordenado da dívida pública e a redução do seu custo, sem cair na tentação, com efeitos desastrosos, do uso de expedientes heterodoxos freqüentemente propostos por setores mais à esquerda do PT, e mesmo por alguns economistas de outros partidos. Ao mesmo tempo, criaram-se condições para o florescimento do mercado de títulos privados de vencimentos mais longos, que são necessários para o desenvolvimento da construção civil e para o financiamento privado da formação bruta de capital fixo. Paradoxalmente, enquanto o Tesouro aproveitou o momento internacional positivo com a atitude correta, parte do governo Lula rema na direção contrária. O vertiginoso aumento dos gastos públicos está colocando em risco o precário "equilíbrio" fiscal conseguido a duras penas. Desde a conquista da estabilidade de preços, com o Plano Real, sabia-se que a carga tributária teria que se elevar para compensar a receita do imposto inflacionário, que flutuava em torno de 4% do PIB. Sabia-se, também, que a inflação dentro do ano corroía as despesas, cujo valor nominal era fixado ao início do ano, e que conseqüentemente o término da inflação elevaria as despesas reais. A carga tributária teria que sofrer uma elevação "única e para sempre" para compensar tanto o fim da arrecadação do "imposto inflacionário" quanto aquele crescimento das despesas em termos reais. No entanto, a despesa pública em termos reais cresceu muito mais do que o necessário para compensar o fim da sua erosão pela inflação, e o que é pior, durante o governo Lula ela vem se acelerando. Ainda que o ministro Palocci tenha reafirmado inúmeras vezes que melhoraria a qualidade da administração fiscal, mantendo os superávits "elevados o suficiente para garantir a sustentabilidade da dívida pública com o controle dos gastos, e não com a elevação das receitas", procedeu exatamente na direção contrária, e negando as suas afirmações, a carga tributária também vem se elevando aceleradamente, sem que tenha ocorrido qualquer movimento para controlar o crescimento dos gastos.

A ação do Tesouro no campo da dívida pública foi um avanço, mas seus efeitos positivos são contra-arrestados pela baixa qualidade da política fiscal

Gastos sociais são importantes em um país pobre, mas o atendimento das classes menos favorecidas não impõe, sozinha, o descontrole dos gastos públicos, e nem obriga que o governo dissipe em gastos correntes recursos que deveriam ser destinados a investimentos. No passado, o governo era um importante agente realizador de investimentos em infra-estrutura, que vêm minguando continuamente. Sabe-se que o crescimento econômico requer taxas mais elevadas na formação bruta de capital fixo, e que para que os investimentos privados ocorram é fundamental que a infra-estrutura de energia e de transportes seja proporcionada direta ou indiretamente pelo governo. A história de mercados emergentes com taxas elevadas de crescimento mostra que os investimentos em infra-estrutura são fundamentais para estimular os investimentos privados. Reconhecendo a perda de capacidade de realizar esses investimentos, o governo FHC optou pela linha das privatizações, com as quais ocorreu um salto de qualidade no setor de telecomunicações. Para obter esse resultado, tinha que garantir a estabilidade de regras, que por sua vez tinha que ser garantida por instituições protegidas da influência do poder político, motivo pelo qual foram criadas as "agências reguladoras". Como todas as instituições novas, aquelas agências tinham defeitos e precisavam de aperfeiçoamentos, porém o governo Lula optou por extingui-las na prática, fundamentalmente por execrar o caminho das privatizações, louvando o aumento do poder do Estado, ainda que falido. Optou pelo mecanismo das PPP, que alguém pode erradamente interpretar como sendo uma forma disfarçada de realizar privatizações, mas que na realidade era uma forma disfarçada de garantir a estatização nos investimentos de infra-estrutura. O movimento nesta direção foi claro. Ainda durante a vigência do acordo com o FMI, o governo tentou mudar a definição do superávit primário, excluindo os investimentos em infra-estrutura do cômputo daquele superávit. Havia neste que aparentava ser apenas um inocente procedimento contábil, o claro objetivo de abrir um canal para que recursos do Estado, através do BNDES e dos fundos de pensão, pudessem financiar os investimentos em infra-estrutura, atirando às favas a dinâmica da dívida pública. Isso não foi possível, e nenhuma PPP até aqui foi realizada, em grande parte porque a destruição do modelo das agências também destruiu os mecanismos de redução das incertezas, necessário para atrair capitais privados. A ação do Tesouro no campo da dívida pública foi um enorme passo adiante. Mas foi o único, e seus efeitos positivos são contra-arrestados pela baixa qualidade da política fiscal. Quando o Brasil quiser de fato eliminar os riscos fiscais que vêm impedindo tanto o crescimento sustentado da economia como a obtenção de "grau de investimento", terá que controlar os gastos públicos, iniciando este processo com uma verdadeira reforma da Previdência. Terá, também, que abandonar as fórmulas mágicas para realizar investimentos de infra-estrutura. E finalmente terá de compreender que para ter sucesso na necessária reforma tributária terá de começar pelo corte de gastos públicos