Título: O brasileiro na linha de frente do setor automotivo argentino
Autor: Marli Olmos
Fonte: Valor Econômico, 27/03/2006, Empresas &, p. B6

Veículos Rovera, presidente da GM Argentina assumiu o comando da Adefa, que reúne os fabricantes do país

O futuro de uma relação até hoje delicada no setor automotivo - a parceria Brasil-Argentina - começa a ser definido na primeira reunião entre os dois governos para o novo acordo automotivo, marcada para esta sexta-feira. Os representantes dos dois países têm, porém, o que aprender com uma recente experiência do setor. Há quase seis meses o comando da Asociación de Fábricas de Automotores (Adefa), a entidade que representa as montadoras na Argentina, passou para as mãos de um brasileiro. O administrador Felipe Rovera assumiu a presidência da Adefa simplesmente porque era a vez de a GM no tradicional rodízio de comando na entidade. Dois meses antes Rovera havia sido deslocado do Brasil para a presidência da General Motors na Argentina. A recuperação do mercado naquele país fez com que a montadora americana decidisse deslocar para lá um executivo que, na companhia desde 1972, acumula experiências que vão do comando das finanças na tensa época de inflação alta ao desenvolvimento de produtos como o Vectra na fábrica da Alemanha. Hoje, Rovera estará em São Paulo para uma palestra sobre sua experiência com fornecedores na Argentina. Nessa entrevista ao Valor , ele conta porque se transformou em um defensor do fortalecimento da indústria de autopeças e de veículos na Argentina, uma meta que o governo daquele país se empenhou em perseguir.

Valor: Como foi o processo da sua transferência para o comando da GM na Argentina? Felipe Rovera: Nossa empresa avaliou que havia chegado a hora de investir na reestruturação da operação argentina.

Valor: E como ocorreu essa reestruturação? Rovera: Minha missão foi colocar a fábrica da Argentina no nível de competitividade e qualidade das unidades brasileiras. A fábrica de Rosário operava com dois turnos deficientes. Trocamos por um com mais eficiência. No lugar de dois turnos com produção de 18 carros por hora, temos hoje um turno com 27 veículos/hora. Reduzimos custos fixos e a fábrica de Rosário é hoje uma das mais produtivas da GM em toda a região.

Valor: O mercado de veículos na Argentina vem crescendo além das projeções. Esse é o momento de a indústria automobilística se voltar para o país? Rovera: Me lembro de ter saído de uma reunião com o então ministro da economia Roberto Lavagna, em junho de 2005, com a sensação de que a questão do setor automotivo não estava sendo trabalhada. No entanto, nos últimos meses o governo argentino tem se aberto às reivindicações do setor e, acima de tudo, está trabalhando para melhorar a infra-estrutura, uma questão importante para esse setor.

Valor: Há, então, estímulo para as montadoras investirem? Rovera: Sim. O governo argentino está mostrando vocação para o desenvolvimento da indústria automobilística.

Valor: Com a crise argentina, fabricantes de veículos e de peças passaram a concentrar as operações no Brasil. Isso tende a mudar? Rovera: Na GM, nos últimos meses nacionalizamos perto de 14 componentes que antes não eram comprados na argentina. São peças de acabamento, como plásticos injetados e mecanismos de bancos. A GM investirá US$ 20 milhões na Argentina até 2007 somente para aumentar o índice de nacionalização. Toyota, Volkswagen, Ford e Peugeot estão indo na mesma direção. Num prazo de dois anos e meio os investimentos que serão feitos por fornecedores diretos das montadoras na Argentina vão somar US$ 800 milhões.

Valor: Isso significa o início de um novo ciclo? Rovera: A GM, por exemplo, deslocou este ano do Brasil para Buenos Aires o evento de entrega de prêmios aos melhores fornecedores da região. O gesto serviu de mensagem ao governo. Ao mesmo tempo, a presença do secretário da Indústria, Miguel Peirano, demonstrou aos fornecedores o empenho do governo argentino. Isso faz parte de um ciclo de evolução. Cada emprego aberto em montadora cria mais três a quatro na indústria de autopeças. Vale aqui lembrar que a taxa de desemprego na Argentina hoje é de apenas 10,5%.

Valor: Qual é o nível de emprego nos montadoras argentinas? Rovera: Mais de 8 mil trabalhadores. Mas esse quadro tende a crescer porque a Peugeot e a Toyota já iniciaram o segundo turno e a Ford tem intenções de fazer o mesmo.

Valor: Hoje é mais vantajoso exportar a partir da Argentina do que do Brasil? Rovera: Sim. Mas não apenas pela vantagem cambial, mas também porque o custo estrutural na Argentina é inferior.

Valor: Os dois países vão começar agora as discussões para o novo acordo automotivo, que deverá entrar em vigor no dia 1º de julho. Existem algumas divergências entre os dois lados. Como deverá ser essa negociação? Rovera: Eu defendo um programa para o Mercosul. A Argentina pode, sim, ter uma indústria automobilística que seja forte. Mas, ao mesmo tempo, é preciso entender que essa estrutura tem de ser uma complementação da brasileira.

Valor: O setor automotivo deve, então, trabalhar para o fortalecimento do Mercosul? Rovera: Temos de nos preparar para que o bloco possa enfrentar os ataques que virão da Europa e China. Na região da Grande Buenos Aires há 4 mil mini mercados comandados por imigrantes chineses que faturam juntos o equivalente a 40% da receita do Carrefour no país.

Valor: E quando começam as negociações do acordo automotivo? Rovera: Haverá uma reunião no dia 31 de março (sexta-feira). Várias questões estão na pauta. Mas a idéia geral é buscar formas de incentivar o aumento da produção de veículos na região.

Valor: Qual foi a reação dos argentinos ao ver um brasileiro assumir a presidência da associação que representa as montadoras na Argentina (a Adefa)? Rovera: O começo não foi fácil. Eu argumentava que era brasileiro 'por acaso'; porque, na verdade, eu sou um executivo com experiência internacional por já ter trabalhado na Alemanha e Estados Unidos. Além disso, a GM do Brasil já teve um presidente argentino (Walter Wieland) e o atual, Ray Young, é um canadense filho de chineses.

Valor: Como o senhor se preparou para a mudança? Rovera: Li muitos livros para entender não apenas a língua, mas também a cultura argentina.

Valor: O que o senhor aprendeu com os argentinos nesses meses? Rovera: É preciso respeitar as diferenças. O grande erro do brasileiro é pensar que as coisas na Argentina são iguais às do Brasil. Enquanto o argentino é um povo que protesta mais e se une mais diante de tragédias, por outro lado, ele é muito mais pacífico que o brasileiro quando assume o papel de consumidor.

Valor: O senhor já torce para algum time argentino? Rovera: No futebol, eu tenho me mantido neutro. Ainda não me decidi. Mas se os times do Brasil e da Argentina se enfrentarem na fase classificatória da Copa do Mundo...