Título: Programa emperra no RG da pobreza
Autor: Maria Cristina Fernandes
Fonte: Valor Econômico, 26/11/2004, Política, p. A-7
Quanto você gastou no mês passado com alimentação? E com remédios? Qual sua despesa fixa de transporte? E a conta de água e luz? Qualquer brasileiro teria dificuldades de responder a essas perguntas. Se tiver renda incerta, então, as respostas tornam-se um exercício de imaginação. Estas perguntas constam do "Cadastramento Único para Programas Sociais do Governo Federal" - duas páginas com 70 itens a serem preenchidos pelos candidatos ao programa Bolsa Família do governo federal. Esse cadastro está no eixo dos problemas que desarticulam o maior programa social e principal bandeira eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O controle sobre este cadastro divide forças no Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome e está na esteira do desmonte do núcleo dos seus principais operadores. Apesar de ser aplicado há mais de um ano, quando os programas de transferência de renda do governo foram unificados, esse cadastro tem informações desconhecidas até mesmo pelo ministério gestor do Bolsa Família. Especialista em Políticas Sociais e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lena Lavinas tem tentado em vão informações como o número de beneficiados que passaram da linha de pobreza e qual a renda média das famílias beneficiadas. "Os gestores do Bolsa Família são idôneos e todos movidos pelos mesmos objetivos, mas não conseguem se entender sobre como operar o sistema", diz . Mas a omissão mais grave sobre o cadastro parece ser o custo de sua operacionalização. O grau de detalhamento exige que o recenseador volte várias vezes à residência. A cada integrante da família beneficiada deve corresponder um cadastro, apesar de ser uma única bolsa por família. Tudo isso para que, ao fim, o cadastrado receba o R$ 0,60 por dia, considerando o benefício médio de R$ 72 para uma família de quatro pessoas. Para Lena Lavinas, mais escandaloso do que descobrir beneficiados remediados e excluídos miseráveis, seria constatar que o custo do cadastramento e controle supera o dos benefícios. As distorções, diz, são inevitáveis em programas de massa. A única forma de fazê-lo é pela universalização. Nos países europeus de longa tradição em políticas de transferência de renda, há a banda da universalização (Suécia, Dinamarca, Finlândia, Bélgica, Irlanda e Holanda) e a dos países que optam por programas mais focalizados (Inglaterra, Irlanda, Espanha, Itália e Portugal). Entre os países de benefícios universais, a população alvo são as crianças. Levinas mostra que as chances de uma criança ser pobre na Itália é 7,5 vezes maior do que na Dinamarca.
Indiscutível é que em nenhum desses países a redução da pobreza foi possível sem volumosas transferências de renda. O mais recente estudo do secretário municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo, Marcio Pochmann, sobre políticas de proteção social traz os dados. Naqueles países é considerado pobre quem ganha até 50% da renda média. Na Suécia, por exemplo, a taxa de pobreza chega a atingir 35% da população (ver gráfico acima). Contabilizada a renda transferida pelo Estado, esse índice cai para 6%. Na maior parte desses países, a iniciativa privada colabora com o financiamento desses programas. Na Bélgica e na França essa contribuição privada chega à metade do total. No Brasil calcula-se que cerca de um terço da população é de pobres, estando a linha de pobreza na renda familiar per capita de até meio salário mínimo. É nesse terço que se situa a meta de 11,2 milhões de famílias estabelecida pelos programas de transferência direta de renda do governo. Até o fim de 2004 a expectativa é de que 6,5 milhões tenham sido atendidos. Os especialistas em políticas sociais duvidam que o governo consiga chegar à meta em 2006 com a complexidade de cadastros e controles que regem o programa. Professor de Educação da Fundação Getúlio Vargas e no comando do Ibase desde a morte de Herbert de Souza, o Betinho, em 1997, Cândido Grzybowski, é um dos defensores da universalização do Bolsa Família. "A distinção de beneficiários é o caminho mais rápido para a corrupção", diz. Ele vai na contramão das denúncias que cercam o Fome Zero dizendo que a boa merenda é mais eficiente para garantir a freqüência do que a fiscalização dos benefícios. Acredita ainda que o maior mérito do Bolsa Família é a rapidez com que os beneficiários foram triplicados nessa primeira metade do governo Lula. Diz que o estabelecimento de condicionalidades para o acesso ao programa traduz uma mentalidade punitiva da sociedade brasileira em relação aos seus pobres. Um exemplo de programa sem restrições de acesso, e louvado pelos especialistas como uma das melhores iniciativas de transferência de renda do país, é o bilhete único adotado pela Prefeitura de São Paulo. Sua universalização não impede que os mais beneficiados seja a população de baixa renda. A universalização do Bolsa Família, a partir de crianças de 0 a 16 anos, como propõe Lena Lavinas, multiplicaria por dez os custos atuais do programa. A ampliação, que sempre foi improvável, teria sido ainda mais inviabilizada pela necessidade de o governo contemplar insatisfações dos que pagam Imposto de Renda. Um dos maiores riscos da crise que envolve a tumultuada gestão do Bolsa Família é que seu fracasso ameaçaria também esse voto de confiança da classe média na mais ampla promessa de redução de pobreza já feita no país.