Título: Discórdia pública
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 28/05/2010, Mundo, p. 20

Impasse nuclear

Hillary Clinton fala em ¿divergências muito sérias¿ entre Brasil e EUA sobre o Irã. Lula critica ¿prepotência¿, sem dar nomes

Os esforços do Itamaraty para tentar minimizar as tensões com os Estados Unidos por conta do programa nuclear iraniano foram por água abaixo após as duras declarações de ontem da secretária de Estado Hillary Clinton. Pela primeira vez de maneira pública e explícita, ela disse que há ¿divergências muito sérias¿ entre as políticas dos dois países sobre o Irã, e acusou Teerã de estar ¿usando¿ o Brasil. Na mesma hora, em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não foi tão direto, mas, ao lado do primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, criticou os que ¿utilizam a prepotência¿ e não negociam. ¿Com truculência, a gente não resolve os problemas nem dentro da nossa casa¿, criticou Lula. ¿Certamente, temos divergências muito sérias com a diplomacia brasileira no que concerne ao Irã¿, afirmou a secretária de Estado, durante coletiva sobre a nova estratégia de segurança do governo Obama. Ela, no entanto, tentou amenizar o discurso ao dizer que ¿a discordância não mina o comprometimento de ver o Brasil como um país amigo e parceiro¿. ¿Queremos uma relação com o Brasil que resista ao teste do tempo¿, afirmou. Hillary revelou ter dito ao colega brasileiro, Celso Amorim, que dar um tempo ao Irã ¿torna o mundo mais perigoso, e não menos (perigoso)¿. Ela ainda afirmou que a pressão por novas sanções não resultará em mais conflito. ¿Pensamos que os iranianos estão usando o Brasil, nós achamos que é hora de ir ao Conselho de Segurança.¿ Após mais de uma hora de reunião no Itamaraty, Lula e Erdogan sugeriram que não é o Irã quem está desprezando o diálogo. ¿Se o documento assinado por nós era o que a agência reivindicava em outubro do ano passado, se está muito próximo da carta que o primeiro-ministro (turco) e eu recebemos, por que não aceitar o que está no documento assinado em Teerã?¿, questionou o presidente brasileiro, referindo-se à carta que o presidente Barack Obama enviou ao Planalto dias antes da viagem de Lula a Teerã. Na mensagem, Obama insta o Brasil a ¿insistir junto ao Irã na opção de manter seu urânio depositado em caução na Turquia¿. ¿É preciso que as pessoas digam, claramente, se querem construir possibilidades de paz ou de conflito¿, afirmou. Para Erdogan, quem quiser evitar a proliferação nuclear ¿ inclusive as potências ocidentais ¿ tem de dar ¿certos passos¿. ¿Os países que não têm armas não devem iniciar programas para o desenvolvimento de arsenais nucleares. Aqueles que têm devem iniciar programas para eliminá-las¿, disse. Ele acrescentou que todos os que criticam o avanço obtido com o acordo assinado por Irã, Brasil e Turquia sobre a troca de urânio são ¿invejosos¿. ¿Nós acreditamos que o que fizemos era certo, trabalhamos por aquilo que anteriormente fora exigido e esperado, e o que conseguimos foi produto desses esforços¿, destacou. A impressão é compartilhada por Lula, que comparou a repulsa das potências ocidentais à Declaração de Teerã com a fábula A raposa e as uvas, imortalizada pelo francês Jean de La Fontaine. Na história, a raposa despreza as uvas depois de tentar alcançá-las, sem sucesso, no alto de uma parreira. ¿O que aconteceu conosco foi a mesma coisa: nós fizemos o que eles tentavam fazer há muitos anos, alguns países, há 30 anos (sem sucesso)¿, comparou.

Conselho Para o Grupo de Viena, formado por EUA, França e Rússia, mais a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Lula deu um conselho: ¿É preciso arejar a cabeça dos negociadores. É preciso que eles saiam de casa pensando na paz, e não na guerra¿. ¿Eu não conheço de negociação nuclear, mas passei dois terços da minha vida negociando. Se a pessoa que vai negociar não estiver disposta e com boa vontade de fazer um acordo, não haverá acordo¿, declarou. Em visita ao Rio de Janeiro, onde participará hoje do 3º Fórum da Aliança de Civilizações, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, disse que seria uma grande ajuda ¿se o Irã concordasse em parar de enriquecer urânio a 20%¿. ¿No centro dessa crise parece haver uma séria falta de confiança¿, observou.