Título: A esquerda e o desenvolvimentismo
Autor: José Luís Fiori
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2006, Opinião, p. A15

Toda reconstrução histórica é um pouco arbitrária e imprecisa. Mas feita esta ressalva, pode-se afirmar que o "desenvolvimentismo" latino-americano nasceu no México, durante o governo do presidente Lázaro Cárdenas, na década de 1930. Cárdenas foi nacionalista e seu governo fez uma reforma agrária radical; estatizou a produção do petróleo; criou os primeiros bancos estatais de desenvolvimento industrial e de comércio exterior da América Latina; investiu na construção de infra-estrutura; praticou políticas de industrialização e proteção do mercado interno; criou uma legislação trabalhista e adotou uma política externa independente e antiimperialista. Depois de Cárdenas, com pequenas variações, este programa se transformou no denominador comum de vários governos latino-americanos, que depois foram chamados de "nacional-populares" ou "nacional-desenvolvimentistas", como foi o caso de Vargas, no Brasil, Perón, na Argentina, Velasco Ibarra, no Equador e Paz Estenssoro, na Bolívia, entre outros. Nenhum deles era socialista, nem muito menos marxista, pelo contrário, eram quase todos conservadores, mas suas idéias, políticas e posições internacionais também se transformaram na referência obrigatória da esquerda latino-americana.

-------------------------------------------------------------------------------- A relação entre a esquerda e o desenvolvimentismo no Brasil seguiu trajetória original graças ao desaparecimento precoce da ANL e ao golpe do Estado Novo --------------------------------------------------------------------------------

Depois de 1930, e em particular depois que os partidos comunistas latino-americanos adotaram uma estratégia democrática e reformista de conquista do poder e transformação do sistema capitalista, a relação da esquerda com o "desenvolvimentismo" transformou-se no núcleo duro de sua produção intelectual e política. Foi o que ocorreu em quase todos os países do continente, pelo menos entre 1930 e 1980. Não é difícil, por exemplo, encontrar a inspiração "cardenista" nos programas da revolução camponesa boliviana de 1952 e no governo democrático de esquerda de Jacobo Arbenz, na Guatemala, entre 1951 e 1954. Como também, na primeira fase da Revolução Cubana, entre 1959 e 1962, e no governo militar e reformista do general Velasco Alvarado, no Peru, entre 1968 e 1975. Idem, no caso do governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973. No Brasil, entretanto, esta relação entre a esquerda e o "desenvolvimentismo" seguiu uma trajetória absolutamente original, graças a dois acontecimentos da década de 1930 que marcaram definitivamente a história do país. O primeiro foi o desaparecimento precoce da Aliança Nacional Libertadora (ANL), a primeira grande mobilização democrática nacional e urbana, de classe média e de centro-esquerda, que ocorreu no Brasil e foi abortada e dissolvida prematuramente depois do fracasso da rebelião militar comunista, de 1935. E o segundo foi o golpe de Estado de 1937, que inaugurou o governo autoritário do Estado Novo de Getúlio Vargas e suas primeiras políticas industrializantes e trabalhistas, que tiveram uma forte conotação anticomunista e antiesquerdista. Por isto mesmo, a esquerda brasileira só se aproximou e reconciliou com algumas teses e propostas do "desenvolvimentismo conservador" de Vargas na década de 50 e, sobretudo, durante o governo de JK. Foi quando o Partido Comunista Brasileiro (PCB) abandonou sua estratégia revolucionária e assumiu a defesa de um projeto de "desenvolvimento nacional" que deveria ser liderado pela burguesia industrial brasileira. Teses e propostas que transcenderam as pequenas fronteiras partidárias do PCB e influenciaram fortemente toda a intelectualidade de esquerda no Brasil. Mais à frente, no início da década de 60, esta nova esquerda "nacional-desenvolvimentista" propôs um programa de "reformas de base" que acelerassem a democratização da terra, da educação, do sistema financeiro e do sistema político, que foram incluídas, pelo menos em parte, no Plano Econômico Trienal proposto pelo ministro do Planejamento Celso Furtado, em 1963, e abortado pelo golpe militar de 1964. É importante relembrar, entretanto, que naquele mesmo período, a estratégia "nacional-desenvolvimentista" foi duramente criticada por um outro segmento da esquerda, um grupo de intelectuais marxistas, da Universidade de São Paulo, liderados pelo professor Fernando H. Cardoso. Mas este grupo não chegou a propor nenhuma alternativa, naquele momento, ao programa das "reformas de base" e ao Plano Trienal de Celso Furtado. Nas décadas seguintes, a relação entre a esquerda e o "desenvolvimentismo" complicou-se ainda mais, depois que o regime militar, instalado em 1964, abandonou suas primeiras posições ultraliberais e retomou o caminho do "desenvolvimentismo" conservador e autoritário, na década de 70, reavivando as lembranças e os velhos traumas da esquerda. Talvez por isto, quando a esquerda brasileira volta à cena política democrática, na década de 80, a maior parte de sua militância juvenil já tinha um forte viés antiestatal, antinacionalista e antidesenvolvimentista, e considerava que a organização social e a defesa dos direitos da sociedade civil - através dos movimentos sociais e das organizações não-governamentais - era mais importante que a luta política pelo poder do Estado. Assim mesmo, alguns intelectuais e políticos "mais velhos" propuseram reformar, aprofundar e democratizar o "desenvolvimentismo" sob a égide de um "Estado de bem-estar social", alcançando vitórias significativas na Constituição de 1988. Mas depois, na década de 90, foram derrotados sistematicamente, no campo das idéias e da luta pelo poder, pelos herdeiros do "marxismo paulista" dos anos 60, que combinaram, num mesmo projeto, sua intolerância com o nacionalismo, o "desenvolvimentismo" e o populismo e sua proposta alternativa de um novo tipo de desenvolvimento "dependente e associado" com os Estados Unidos, só compatível com as políticas e reformas neoliberais. Este "pacote intelectual" nasceu em São Paulo e penetrou profundamente a intelectualidade dos dois partidos social-democratas que também nasceram naquele Estado, o PSDB e o PT. Por isto, não é de estranhar a dificuldade atual do "desenvolvimentismo" para recuperar audiência e fôlego teórico, e deixar de ser apenas uma trincheira de resistência pontual e de contenção limitada de alguns excessos ou demasias neoliberais dos próprios social-democratas.