Título: Futuro dos desequilíbrios mundiais
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2006, Opinião, p. A15

Será que deveríamos parar de nos preocupar e aprendermos a amar os desequilíbrios mundiais? Os investidores certamente parecem acreditar nisso. Apesar do déficit americano em conta corrente ter chegado a 7% do Produto Interno Bruto (PIB) no último trimestre de 2005, a taxa de câmbio real estabilizou. Mas o melhor momento para nos preocuparmos com tais tendências é quando todo mundo deixou de se preocupar. Esse momento é agora. Por que deveríamos continuar preocupados com desequilíbrios mundiais? A resposta é que eles são indesejáveis, não podem persistir indefinidamente e, quanto mais perdurarem, maior e mais doloroso será o ajustamento. E ainda pior, como demonstram as recentes ameaças do Congresso americano à China devido à sua "manipulação cambial", muito prejuízo poderá ser causado à economia mundial e às relações internacionais ao avançarmos rumo ao futuro, Entretanto, para que compreendamos os perigos, precisamos inicialmente perceber o que está acontecendo. Muitas pessoas no restante do mundo - e não poucas nos EUA - concordam que a culpa é dos americanos. Se ao menos, argumentam os críticos, o governo dos EUA tivesse um déficit fiscal menor e as famílias americanas fossem menos esbanjadoras, os déficits em conta corrente desapareceriam. Essas pessoas estão certas: se os EUA sofressem uma depressão econômica, o déficit comercial certamente definharia. No entanto, essa cura seria enormemente mais dolorosa do que a enfermidade. Com efeito, a atual configuração econômica mundial não é a doença, mas o resultado da cura. Entretanto, essa particular cura produz dolorosos efeitos colaterais e não pode ser suportada indefinidamente. Como observou Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, em recente conferência sobre a Índia: "Há um fato notável sobre a economia mundial que contradiz uma explicação predominantemente americana para o padrão de fluxos mundiais de capital: as taxas de juros reais em nível mundial estão baixas, e não altas" ("Reflections on Global Account Imbalances and Emerging Markets Reserve Accumulation", March 24, 2006, www.president.harvard.edu/speeches ). O superávit de poupança do restante do mundo está estimulando os elevados déficits em conta corrente e os gastos domésticos nos EUA; não é a poupança americana deficiente que está inibindo os gastos domésticos em outros países. Uma superpotência pode ser acusada de estar sempre errada. Mas, como explicam Charles Dumas e Diana Choyleva, da Lombard Street Research, de Londres, em uma análise que provoca reflexões, numa linha de argumentação também trilhada por Wynne Godley, de Cambridge, a força motriz por trás dos desequilíbrios mundiais é o superávit estrutural de poupança da Ásia, onde a China desempenha um papel cada vez mais importante ("The Bill from the China Shop: How Asia's Savings Glut Threatens the World Economy", Profile Books, 2006). Os EUA não podem, com segurança, reduzir seu excesso de gastos se outros países não reduzirem simultaneamente seus excessos de poupança. Se aceitarmos as proposições segundo as quais os gastos domésticos e os déficits em conta corrente americanos são uma reação desejável ao excedente desejado da poupança sobre o investimento no restante do mundo, por que deveríamos nos preocupar? A resposta é clara: apesar de melhores do que as alternativas imediatas, os crescentes desequilíbrios são piores do que as piores alternativas. Em primeiro lugar, os desequilíbrios são resultados de más políticas nos países exportadores de capital. A acumulação mundial de US$ 2,340 trilhões em reservas adicionais em moeda estrangeira desde o início de 2000 foi resultado de decisões de intervir nos mercados cambiais. Em nível mundial, o custo de oportunidade das reservas mantidas pelos dez maiores detentores de reservas está agora em torno de 2% do PIB, argumenta Summers.

-------------------------------------------------------------------------------- O superávit de poupança do restante do mundo está estimulando os altos déficits em conta corrente e os gastos domésticos nos EUA --------------------------------------------------------------------------------

As reservas da China, sozinhas, são hoje de US$ 600 para cada homem, mulher e criança. E continuam crescendo. Não poderia um governo preocupado corretamente com persistente pobreza em massa fazer algo mais inteligente com esse dinheiro do que emprestá-lo para os EUA, a taxas de juro muito baixas, e então ver os americanos tanto queixar-se como, em última instância, com toda probabilidade, desvalorizar sua moeda e, assim, deixar de honrar, em parte, seus compromissos? Segundo, a escala do endividamento americano no exterior, é verdade, permitiu ao presidente americano George W. Bush oferecer pães e canhões. Mas o impacto adverso sobre setores que produzem bens e serviços comerciáveis também exacerbou sentimentos protecionistas. Na próxima vez em que a economia desaquecer, a expressão desses sentimentos poderá tornar-se tanto ensurdecedora como perigosa. Terceiro, coisas estranhas estão acontecendo com a economia americana. Quando o setor externo está registrando um enorme superávit financeiro, os setores domésticos precisam, no agregado, incorrer em enormes déficits (excesso de gastos sobre receitas). Desde o estouro da bolha de investimentos no mercado acionário, o setor empresarial entrou em superávit. O governo, e sobretudo as famílias, estão registrando um déficit enorme. Em 1982, as famílias acumulavam um superávit de 5,5% do PIB. Atualmente, acumulam um déficit sem precedentes, perto de 7% do PIB. Em conseqüência, o endividamento e o serviço da dívida das famílias estão, ambos, em disparada. Finalmente, a contrapartida do enorme afluxo de capital não é crescente investimento, mas crescente consumo e diminuição da poupança nacional. A poupança bruta está em torno de 14% do PIB e a poupança líquida em apenas 1%. Os investimentos também estão majoritariamente inclinados para o setor imobiliário e para o setor de bens e serviços não-comerciáveis, que não pagarão dívidas externas. Por fim, embora não menos importante, o financiamento do afluxo assumiu cada vez mais a forma de concessão de empréstimos de curto prazo, inclusive empréstimos oficiais larga escala. Sim, há economistas que argumentam que os enormes déficits americanos em conta corrente são uma miragem ou, se não isso, sustentáveis indefinidamente. O professor Willem Buiter, da London School of Economics, tratou desse argumento no fórum dos economistas patrocinado pelo FT (www.ftblogs.typepad.com/ martin_wolf/). O argumento é, creio, incorreto, a menos que suponhamos uma quase ilimitada generosidade dos exportadores de capital. Nos últimos 15 anos, as importações americanas (a preços constantes) cresceram a uma tendência de 8,3% ao ano, ao passo que as exportações cresceram a 5,1%. Hoje, em conseqüência disso, as importações estão 60% maiores do que as exportações. Seria necessária uma reversão substancial nessas taxas relativas de crescimento para que o déficit em conta corrente, como percentual do PIB, simplesmente estabilizasse, que dirá para que caísse. Entretanto, se essas tendências se mantiverem, o déficit em conta corrente e a posição do passivo líquido chegaria, mesmo sem aumento no custo dos recursos para os EUA, a 17% e 100% do PIB, respectivamente, em 2016. O que é indesejável deveria ser mudado. O que é insustentável mudará. O que é perigoso precisa mudar. Entretanto, para que o mundo possa evitar uma recessão grave é preciso iniciar ajustes nos países superavitários. O destino da economia mundial não está predominantemente em mãos americanas. É tranqüilizador para muitos - tanto americanos como não-americanos - desacreditar disso. Ainda assim, essa é a verdade.