Título: Para Mendonça de Barros, "Lula perdeu o fiador da reeleição"
Autor: Sergio Lamucci e César Felício
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2006, Especial, p. A16

O ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros considera a demissão do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, boa do ponto de vista do interesse eleitoral das oposições. Para Mendonça de Barros, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisará dar novas provas de ortodoxia econômica, sob pena de ver os agentes do sistema financeiro se voltando contra ele. Já Geraldo Alckmin, governador de São Paulo e candidato do PSDB à sucessão de Lula, não enfrentará esse problema, avalia o ex-ministro, pois fez uma gestão marcada pela austeridade fiscal, o que inclusive vai lhe permitir ser mais ousado na questão do crescimento. Fabiano Cerchiari/Valor Mendonça de Barros: mudança estrutural nas contas externas abre espaço para país crescer a taxas mais robustas

Em entrevista ao Valor, Mendonça de Barros enfatizou a importância de mudar a qualidade da política fiscal, atacando o problema pelo lado das despesas. Segundo ele, a contenção de gastos é fundamental para permitir a redução significativa dos juros e da carga tributária. Para o ex-ministro, que tem participado das discussões de política econômica da candidatura tucana, esse ponto é consensual no PSDB, assim como são a estabilidade de preços e a abertura da economia. Ele admite que há divergências, pontuais, entre os tucanos, como em relação ao papel do Estado na economia e ao câmbio. No caso do câmbio, por exemplo, alguns, como ele, defenderiam o câmbio flutuante "sujo", em que o Banco Central (BC) intervém mais no mercado, enquanto outros preferem uma flutuação mais pura.

Alckmin, segundo ele, ainda não optou por nenhuma delas. "É muito cedo para ele ter uma definição", diz Mendonça de Barros, que também ressalta a importância do ajuste estrutural das contas externas ocorrido nos últimos anos. Essa mudança, segundo ele, abre espaço para o país crescer a taxas mais robustas por períodos longos, na casa de 4% a 5%, sem que haja desequilíbrios externos ou pressões inflacionárias preocupantes - desde que a política fiscal seja austera. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Com a demissão de Palocci, o que muda na condução das campanhas presidenciais do PSDB e do PT? Luiz Carlos Mendonça de Barros: A demissão do Palocci, independente da gestão da economia nestes meses que faltam, tem uma repercussão muito mais importante no processo eleitoral. Palocci é quem deu consistência à política econômica do presidente Lula. Escolheu um caminho e conseguiu convencer o presidente de que este era o único caminho que existia. Ele construiu uma credibilidade própria, com a montagem de uma equipe com um rumo econômico consistente e amarrado e, em segundo lugar, a ascendência sobre o Lula. Até sua demissão, o mercado não colocava nenhum preço de risco eleitoral, porque sabia que a relação Palocci/Lula levava à manutenção desta política econômica. Sem Palocci, o que o mercado hoje se pergunta é quem será o fiador da política econômica nos próximos quatro anos em uma eventual vitória de Lula.

Valor: Lula vai ter que demonstrar de novo o seu compromisso com a estabilidade? Mendonça de Barros: Vai ter que mostrar. Sem Palocci, Lula não tem credibilidade.

Valor: Ele vai precisar de uma nova Carta ao Povo Brasileiro? Mendonça de Barros: Acho que sim. Para ter credibilidade, há duas hipóteses. Ou você tem uma história pregressa que lhe outorga esta condição, ou tem que firmar um compromisso. Vamos pensar no governador Geraldo Alckmin. Ele não precisa de carta. Sua história no governo de São Paulo já é suficiente para dar aos agentes econômicos a segurança de que fará um governo racional. O mercado não gosta é de insegurança, mais do que os empresários. A opção do sistema financeiro por Lula e por Palocci tinha um pouco isso. Sabia-se o que se podia esperar. Sem Palocci, esta posição não existe. Lula gera mais incertezas do que certezas.

Valor: Mas os agentes econômicos não cobrarão de Alckmin o compromisso com a estabilidade? Mendonça de Barros: Quem precisa antecipar nomes, arranjar alguém que o represente, firmar cartas é quem tem uma história em sentido contrário. O Alckmin e o PSDB são, na essência, os defensores da estabilidade. Se eu sou defensor, não preciso a cada decisão que eu tomo, ficar ratificando este compromisso. E pode ser um pouco mais ambicioso na questão do crescimento.

Valor: Com a queda de Palocci, a economia deixou de ser um trunfo para Lula? Mendonça de Barros: O cenário econômico até as eleições é bom, não extraordinário. Estamos trabalhando com um crescimento entre 3% ou 3,2%. Se você abre o crescimento, vê grandes diferenças. O comércio crescendo a taxas mais elevadas é um sinal de que o sujeito está vivendo melhor. Quando você vê o comportamento do comércio por região brasileira, o que se constata é que na região Sul, nos últimos 12 meses, teve uma queda. Na região Sudeste, houve um crescimento da ordem de 5%, compatível com o crescimento do PIB. Quando você vai para o Norte e Nordeste, a taxa é de 28 ou 29% ao ano.

Valor: Isto é um produto da expansão do programa Bolsa Família e do aumento do salário mínimo? Mendonça de Barros: Sim. Nessas regiões, a qualidade de vida está melhorando muito.

Valor: Ou seja, para a oposição é melhor direcionar o debate para o campo ético do que para o econômico? Mendonça de Barros: Na região Norte e Nordeste, por causa dos programas de transferência, a economia está mexendo na expectativa das pessoas. Analistas a quem eu respeito muito têm dito que a grande batalha eleitoral vai ser no Nordeste, onde o Lula tem mais de 50% das intenções de voto e o Alckmin de 10% a 12%. A questão ética vai ser fundamental, mas claramente no Nordeste esta questão perde um pouco a força, porque lá o cidadão vai dizer que a vida dele melhorou bem e é verdade. O nível de consumo está baixo, mas em relação há três anos, melhorou muito. Então a questão da política econômica desequilibra para o lado do Lula mesmo.

Valor: O sr. é tido como um desenvolvimentista e está dando muita ênfase à questão fiscal. Isso mostra que as diferenças dentro do PSDB são menores do que se pensa? Mendonça de Barros: Essa convergência ocorreu porque a economia brasileira amadureceu em termos de política econômica. À medida que a economia se organiza, esse espaço de divergência diminui. Há algumas divergências que são absolutamente naturais, que são ideológicas e existem em qualquer lugar do mundo. Eu tenho uma visão de Estado um pouco mais intervencionista no domínio econômico do que alguns colegas meus de partido.

Valor: É o caso do papel do BNDES, por exemplo?

-------------------------------------------------------------------------------- É preciso criar um canal muito claro e eficiente de fiscalização sobre um mandato (BC) que atinge a sociedade" --------------------------------------------------------------------------------

Mendonça de Barros: É o papel do BNDES, o papel da intervenção do BC na taxa de câmbio... Há um consenso entre os economistas do PSDB que o sistema de câmbio flutuante é o melhor, aliás, é o único possível de existir no Brasil. Mas há o câmbio flutuante puro, em que não há nenhuma intervenção do BC, e há o câmbio flutuante sujo, em que há alguma intervenção. É uma divergência da forma como o Estado deve operar, mas isso é apenas o topo do pensamento econômico. No fundamental, a convergência hoje é absoluta. O importante é que dentro do PSDB há uma grande convergência e Alckmin vai certamente trabalhar com ela. Quando ele for fazer o ajuste fino na política econômica, ele tem duas leituras diferentes e vai optar por uma dessas leituras.

Valor: Ele já fez essa opção? Qual é o pensamento macroeconômico do Alckmin? Mendonça de Barros: O pensamento macroeconômico do Alckmin é o do PSDB, em que não há divergências. O que é o pensamento macroeconômico? São os grandes valores que a política econômica deve perseguir. Quais são esses valores? O primeiro é a estabilidade de preços. O segundo é a abertura para o exterior. O Brasil é uma economia que depende e vai depender cada vez mais do dinamismo do comércio exterior, tanto o crescimento das exportações quanto das importações. O terceiro ponto é a responsabilidade fiscal. O governo precisa ter as finanças equilibradas. O quarto ponto é que é necessário haver uma convergência das grandes variáveis macroeconômicas do Brasil com as do mundo, porque é assim que a economia global trabalha hoje.

Valor: O que falta para essa convergência? Mendonça de Barros: A primeira é uma taxa de juros muito acima da operada no mundo todo. A segunda é uma carga fiscal muito acima do que você enxerga nas outras economias. É necessário ter um processo de redução significativa dos juros reais e da carga tributária. Como se resolve essa equação é o foco central da política econômica e não há divergência quanto a isso. Se eu tenho que reduzir a carga tributária, há apenas uma forma de conseguir isso, é reduzindo gastos. Acho que nós evoluímos no Brasil para um consenso de que está na hora de sair do superávit primário (o resultado das contas públicas antes do pagamento de juros) como medida de gestão fiscal e ir para o resultado nominal (que inclui os gastos com juros), como é em todo lugar do mundo. Como é que eu consigo reduzir a carga fiscal, mantendo um equilíbrio nominal no Orçamento? Isso só pode ser obtido com a redução de gastos, que permite uma diminuição dos juros sem causar pressões inflacionárias. No momento em que eu criar condições de reduzir gastos correntes, eu abro espaço para que haja uma diminuição maior dos juros. Com isso, eu acabo reduzindo os gastos com juros dentro do orçamento, reforçando a tendência de queda da carga tributária.

Valor: Como viabilizar politicamente o ajuste fiscal por meio de corte de gastos? Aprovar uma reforma da Previdência ou desvincular receitas de despesas pré-determinadas são coisas difíceis de fazer. Mendonça de Barros: Eu não acredito nisso. A opinião pública é inteligente. Para conseguir um exercício difícil de reforma fiscal, é necessário primeiro ganhar a opinião pública. Fernando Henrique conseguiu em 1995 a criação do Fundo Social de Emergência (FSE, mecanismo que desvinculou 20% da arrecadação de impostos e contribuições da União), que foi absolutamente fundamental para desvincular receitas de despesas num volume bastante razoável. Ele conseguiu convencer a sociedade de que aquele era um elemento fundamental para o Plano Real. Acho que o novo presidente tem uma oportunidade muito semelhante. Qual é o discurso que tem que ser feito para a sociedade? Eu quero aumentar o crescimento, mas, para aumentar o crescimento, eu preciso reduzir os juros. Para reduzir os juros, eu preciso chegar a um equilíbrio fiscal que hoje eu não tenho. Para chegar a esse equilíbrio fiscal, eu preciso desvincular parte das despesas da arrecadação. Não é necessária uma reforma profunda. É preciso simplesmente ganhar essa liberdade de desvincular das receitas as despesas obrigatórias, a partir de um certo nível. Uma das idéias possíveis, que precisa ser trabalhada, é congelar por um certo período, dois anos ou quatro anos, o nível de despesas correntes e deixar que o crescimento da atividade econômica gere um excedente fiscal suficiente para reduzir o déficit nominal. Esse excedente fiscal vai permitir ser mais agressivo nos juros. Eu somo a economia de congelamento da despesa corrente com a economia de juros.

Valor: O próximo presidente assume em janeiro. Em março, ele tem que sinalizar o novo valor do salário mínimo. Não vai haver nenhuma reforma até lá. O sr. defende então que ele defenda aumento real do salário mínimo? É viável politicamente? Mendonça de Barros: Por que não? Isso é uma decisão do candidato. O debate dos economistas é o seguinte: é fundamental ganhar esse espaço fiscal.

Valor: Já há um pensamento claro sobre a questão da autonomia ou independência do BC? Mendonça de Barros: Nessa questão, há uma convergência muito clara e há um ponto de divergência. Não há hoje mais discussão sobre se o BC independente cria as melhores condições para que a política monetária se realize da forma mais eficiente possível. A divergência é sobre o tipo de mandato que o BC deve ter numa sociedade democrática. Se eu vou dar a um grupo de pessoas independência para executar um mandato que atinge a sociedade, eu preciso criar um canal muito claro e eficiente de fiscalização. Essa é a a questão central. Eu acho, e aí é uma opinião pessoal, é que, além de ter que cumprir as metas de inflação, tem que haver algum tipo de cobrança sobre o custo de se realizar esse mandato. Mas a questão do BC independente ainda precisa ser mais discutida nessa amarração entre o mandato da diretoria e o custo em termos de renda ou em termos de produto para atingir a meta de inflação.

Valor: Como o sr. analisa a recente valorização do câmbio? Mendonça de Barros: A taxa de câmbio é formada por movimentos de natureza financeira e de comércio internacional. Se você tem um volume de exportações muito maior que o de importações, a tendência natural é de valorização da moeda. Há apenas uma forma de influenciar, que é reequilibrar a balança comercial. O Brasil tem um saldo comercial na casa de US$ 44 bilhões e seria necessário um saldo de no máximo de US$ 20 bilhões para pagar os serviços da dívida ou outros itens do balanço de pagamentos. Para isso, é necessário importar mais. E como eu importo mais? Crescendo mais. O nosso crescimento está abaixo do que a nossa situação externa permitiria. Qual é o problema? É que os dois mercados são um só. Além do superávit comercial, há um movimento especulativo devido aos juros, que faz com que no segmento financeiro haja uma força muito grande para a valorização do câmbio. Para mim, a leitura correta é que um país que tem esse resultado excedente de dólares tem um equilíbrio macroeconômico errado. Isso sinaliza para um potencial de crescimento maior. Essa é a grande diferença entre esta década e a última década do século anterior. A diferença está no balanço de pagamentos. Há uma sobra de dólares e antes havia escassez.

Valor: Alckmin já tomou posições fundamentais na questão do câmbio? Ele já fez uma opção? Mendonça de Barros: Alckmin é candidato efetivamente há duas semanas. É muito cedo ainda para ele ter uma definição. Depois Alckmin tem uma vantagem. Ele tem no partido duas ou três leituras de uma mesma estratégia de política econômica.

Valor: Não pode haver num governo Alckmin uma disputa sobre o câmbio como a que ocorreu no primeiro mandato de FHC? Mendonça de Barros: Não, porque a diferença é na margem. O duro é quando você tem o defensor do câmbio flutuante e do câmbio fixo. São pensamentos opostos, são caminhos opostos. Mas hoje não, são nuances, se você intervém ou não intervém.

Valor: Que papel o sr. está exercendo neste momento? Mendonça de Barros: Eu talvez seja hoje um dos economistas mais velhos do PSDB. O Pedro Malan e o Edmar Bacha têm a minha idade. É um grupo de economistas já no fim da carreira. A nossa função é mais acalmar esse debate, colocar numa perspectiva construtiva do que colocar lenha na fogueira. Minha grande contribuição a esse debate foi ter sido o primeiro a chamar a atenção nessa mudança no balanço de pagamentos. Essa é a grande diferença entre os últimos dez anos do século anterior e os dez anos do século 21. Nos primeiros anos desse novo ciclo, havia uma discussão se isso era conjuntural ou estrutural. Eu fui um dos primeiros a dizer que isso é estrutural. Essa mudança de preços relativos reflete um novo equilíbrio no comércio internacional, e por isso você pode projetar isso para os próximos anos.

Valor: O sr. está interessado apenas na reflexão ou poderia ter um papel ativo no governo? Mendonça de Barros: A questão se vai trabalhar ou não vai trabalhar é uma questão para frente. Eu particularmente não tenho muito ânimo. Uma motivação é que o governo Lula não tem essa percepção, e quatro anos a mais de um governo Lula ele vai transformar em consumo todo esse ganho que nós tivemos no balanço de pagamentos e que poderia ser usado para investimento.