Título: A nova Lei nº 10.931 e as tais cédulas de crédito bancário
Autor: Gladston Mamede
Fonte: Valor Econômico, 26/11/2004, Legislação & Tributos, p. E-2

Reiteradamente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que "o contrato de abertura de crédito em conta corrente, ainda que acompanhado de extrato da conta-corrente, não é título executivo". Fê-lo tanto que chegou a sumular o entendimento, como se verifica do verbete 233 de sua jurisprudência consolidada. O entendimento fundava-se em aspectos relevantes: a execução por título extrajudicial é medida processual forte, que principia com a penhora de bens que, por tal, são retirados da livre disponibilidade de seus titulares. Medida de tal gravidade somente poderia ser tomada quando a execução se funda em título que expresse dívida que seja inquestionavelmente certa, exigível e, ademais, cujo valor final se mostre líquido, ou seja, de apuração imediata, ainda que fruto de cálculos aritméticos, como ocorre com juros e multas. Se pairam dúvidas sobre ser o débito exigível de imediato, sobre a sua qualidade ou sobre o seu valor, o credor não poderia executá-la, mas pretender o pagamento por ação monitória ou ação de cobrança, que são vias processuais mais afetas à ampla produção de provas e debates de teses jurídicas antagônicas. As instituições financeiras, todavia, jamais aceitaram esse entendimento, pretendendo para si um poder absoluto de definir a exigibilidade, a certeza e a liquidez das dívidas, assim como já possuem uma liberdade para dizer os juros que cobram pelos empréstimos, em função da Lei nº 4.595, de 1964, que lhes afasta a limitação dos artigos 406 e 591 do novo Código Civil de 2002. Esse seria, segundo elas, um dos motivos pelos quais os juros no país são tão elevados e, reiterando um argumento já gasto, se fosse afastado o entendimento da Súmula nº 233 do STJ, os juros seriam menores. O governo Fernando Henrique Cardoso acreditou nisso, editando a Medida Provisória nº 1.925, de 1999, depois convertida em Medida Provisória nº 2.160-25, de 2001, nas quais se criou a cédula de crédito bancário, título que seria certo, líquido e exigível por definição legal (como se isso fosse possível), bastando à instituição credora apresentar uma planilha de cálculo ou extratos de conta-corrente para a sua execução, o que o STJ já considerara prova insuficiente para tanto. O governo Lula, seguindo sua notória inspiração efeagaciana, não fez diferente, como se vê da recente Lei nº 10.931/04, que, embora diga respeito a um assunto absolutamente distinto - a instituição da figura do patrimônio de afetação, aplicável à incorporação imobiliária -, trouxe, como passageiros clandestinos, os artigos 26 a 45, reiterando a disciplina das cédulas de crédito bancário. Fica claro, portanto, que também o Partido dos Trabalhadores (PT) acredita que a culpa é, no fim das contas, dos devedores.

Com a Lei nº 10.931, o atual governo presta um desserviço aos cidadãos: legitima a cobrança de juros capitalizados

Da forma em que está disposta na Lei nº 10.931/04, as instituições financeiras poderão exigir dos clientes que tenham cheque especial a emissão de uma cédula de crédito bancário, com ou sem garantia (penhor, hipoteca, fiança ou aval). Essa cédula, segundo o artigo 28 da lei, é título executivo extrajudicial e representa dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível, seja pela soma nela indicada, seja pelo saldo devedor demonstrado em planilha de cálculo ou nos extratos da conta corrente elaborados pela instituição financeira. Justamente o posicionamento contrário ao pacificado pelo STJ. Posicionamento, aliás, que não tinha por base questões jurídicas, mas, ao contrário, questões de fato: a dificuldade de, a partir de tais planilhas ou extratos, compreender a formação do débito que era executado, retirando do devedor o direito constitucional à ampla defesa. A previsão, todavia, implicará um desafio prático. A cada execução em que o devedor apresentar, em seus embargos, dúvidas fundadas sobre os itens que constam da planilha ou do extrato, bem como sobre os elementos acessórios utilizados no seu cálculo (juros, índices de correção monetária - de utilização pretensamente limitada pela Lei nº 9.069/95, que dispõe sobre o Plano Real -, multas, honorários advocatícios etc), o Poder Judiciário se verá na contingência de respeitar a lei, reiterando a afirmação de liquidez e certeza, ou curvar-se diante da inexorabilidade dos fatos, desconstituindo a execução e remetendo as partes para os procedimentos monitório ou ordinária de cobrança, onde a investigação sobre a existência e a formação do débito são mais amplos. De resto, não se pode deixar de observar que, com a Lei nº 10.931/04, o atual governo presta um outro desserviço aos cidadãos: legitima, por seu artigo 28, parágrafo 1º, inciso I, a cobrança de juros capitalizados - o anatocismo -, mecanismo que tem a capacidade de multiplicar ao infinito as obrigações daqueles que, justamente pelas vicissitudes de uma economia mal conduzida, são arrastados à condição de devedores das instituições bancárias - e somente destas, já que para os cidadãos comuns mantém-se a proibição legal de capitalizar juros. Pior é saber, de antemão, que os juros não irão cair em função desses "milagres legislativos". Basta ver que a cédula de crédito bancário, com essa disposição, já existe há cinco anos, desde a edição da Medida Provisória nº 1.925/99, e continuamos vítimas das maiores taxas de juros cobradas no mundo. E então, anos depois, o presidente dirá que não vetou pois não sabia, não podia imaginar, que acreditava...