Título: Mantega tem arestas a aparar com BC e Tesouro
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 30/03/2006, Brasil, p. A4

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, terá que aparar algumas arestas criadas nos últimos tempos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com o Banco Central e com o Tesouro Nacional, em temas que, se não ferem o tripé da política econômica - câmbio flutuante, regime de metas para a inflação e austeridade fiscal - , mexem no dia-a-dia da gestão e produzem efeitos colaterais na macroeconomia. Assim, não basta garantir que não mudará os fundamentos macroeconômicos. Terá que ir além. Leo Pinheiro/Valor Some-se a isso a orfandade em que a diretoria do BC ficou, com a saída de Antonio Palocci -- que era o ponto de contato do banco com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o amortecedor nas questões mais dolorosas, como política de taxa de juros - e o que resulta é um ambiente ainda de incertezas sobre como serão os próximos oito meses do último ano de mandato. Há dois sinais de que Lula não pretende, mantendo o escopo macroeconômico, patrocinar flexibilidades importantes. Primeiro, ao chamar para si o BC e lhe garantir autonomia operacional, colocando em prática a medida provisória 207, que deu ao presidente Henrique Meirelles "status" de ministro de Estado, deixou claro que ele será o mediador de eventuais conflitos. Segundo, que Mantega sempre foi extremamente fiel ao presidente da República. É nisso que alguns colaboradores da área econômica - que ainda não pediram demissão - se apóiam para sustentar que não deverá haver mudança relevante de rumos até o fim do ano. Exemplos de questões que não foram resolvidas entre o BNDES - desde a gestão de Carlos Lessa - o BC e o Tesouro Nacional, e que agora serão testadas com Mantega à frente do Ministério da Fazenda, são: o futuro da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), a capitalização do BNDES, a avaliação do desempenho fiscal e a trajetória da taxa Selic. O novo ministro também chegou a fazer alguns reparos à administração da dívida pública, na medida em que achava que, obedecendo às regras de mercado e sem ferir contratos, valeria à pena pagar um preço para desindexar de forma mais acentuada a dívida mobiliária da Selic. Carlos Kawall, que deverá sair do BNDES para ocupar uma secretaria do Ministério da Fazenda, provavelmente a do Tesouro, defendeu, em trabalho polêmico, a necessidade de se extinguir as Letras do Tesouro Nacional (LFTs), indexadas à Selic. Para isso, alegava que o BC teria que centrar sua atuação não na taxa de curto prazo, a Selic, mas na construção de uma curva de taxa de juros de médio e longo prazo crescente (trabalho que o Tesouro está executando), tornando a remuneração das LFTs cada vez mais irrisória até sua extinção . Idéia interessante, mas não para ser aplicada quando a dívida em Selic ainda representa 47% da dívida total, avaliam economistas do governo. Essa é uma questão crucial no entendimento do que o novo ministro da Fazenda concebe na questão fiscal. Se o cerne do problema é o tamanho dos encargos financeiros da dívida, o que é preciso atacar são os juros e não elevar continuamente o superávit primário. E para reduzir o custo da dívida, é preciso desindexá-la da taxa Selic, assim como foi feito com a parcela cambial da dívida. Hoje o Conselho Monetário Nacional (CMN) reúne-se sob a presidência de Guido Mantega e deverá examinar outro assunto sensível, que colocou o atual ministro da Fazenda em lado oposto ao Tesouro e BC: a nova TJLP, que referencia os financiamentos do BNDES. A proposta de Mantega, segundo noticiou o Valor, é de uma queda de 1 ponto percentual agora, e outra também de 1 ponto daqui a três meses, reduzindo a taxa dos atuais 9% ao ano para 7% ao ano. No ano passado, um debate importante sobre a taxa Selic e os juros de longo prazo foi abortado, deixando as duas posições em conflito. Banco Central e Tesouro Nacional entendem que a existência de juros subsidiados para uma parcela da economia compromete os efeitos da Selic sobre a redução do crédito geral e, assim, da demanda agregada e, portanto, da inflação. Por essa razão, ao manter uma parcela razoável da economia sem os efeitos da Selic, esta tem que ser bem mais elevada para fazer o mesmo efeito sobre a inflação. Assim, a idéia que Joaquim Levy, o então secretário do Tesouro, advogava era de que ambas as taxas deveriam guardar uma coerência e, mais, era preciso reduzir o diferencial entre elas. A capitalização do BNDES é outro tema pendente desde 2003 no governo. Mantega, como presidente da instituição, levou duas propostas ao presidente Lula: ficar com 75% dos dividendos que teriam que ser remetidos ao Tesouro Nacional este ano, repassando à União apenas 25%, repetindo o que foi feito em 2003; e aumentar o capital social através do uso dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), contornando restrições do acordo de Basiléia. Isso agregaria mais R$ 7,5 bilhões ao capital do BNDES, mas o Banco Central não aprovou a idéia. Pelas regras de Basiléia e do CMN, o BNDES só pode emprestar a um mesmo grupo econômico até 25% do seu patrimônio líquido de referência. Isso equivale a um teto de R$ 5,5 bilhões, e vários grupos já estão muito próximos desse limite, como é o caso da Petrobras, Usiminas e CSN. O Tesouro também é contrário a esse tipo de expediente e defendeu, nas discussões, que o BNDES busque se capitalizar no mercado. Sem aumentar seu capital, o banco não poderá entrar no financiamento para a construção do complexo hidrelétrico do rio Madeira, onde pretende aplicar cerca de R$ 8 bilhões. Obra orçada em R$ 20 bilhões, para construção de duas usinas, a de Jirau (3.300 MW) e a de Santo Antônio (3.150 MW), em dois trechos do rio, o megaprojeto representa uma meia Itaipu. A equipe de Palocci nunca concordou com o projeto, que considerava megalômano e muito além das possibilidades do Estado brasileiro. E argumentava que já há existem soluções mais econômicas, como as concessões para 5 mil MW na região, de projetos mais avançados na análise ambiental e mais próximos aos centros de consumo, e que atenderiam à demanda. Mantega é um entusiasta da obra, que considera o "filé mignon" da política de energia.