Título: O "mercado" só enxerga o que lhe interessa
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 30/03/2006, Opinião, p. A23

A miopia enviesada que domina o chamado "mercado", desdobrada em outros segmentos do cenário nacional, é estonteante! Dá-se absoluta relevância para tudo aquilo que possa afetar as posições dos ativos financeiros a partir da visão de que nada mais importa além da conveniência de uma política econômica que se quer lavrada em pedra. Varre-se para debaixo do tapete o que é realmente fundamental para a consolidação da maturidade institucional do país. Não se está aqui pregando afrouxamento na política monetária, muito menos o descontrole fiscal. Manter a inflação sob controle e os gastos públicos enquadrados em uma receita tributária condizente com a capacidade de produção da economia do país são preceitos universais e devem ser seguidos por todos os governos, com apoio total da sociedade. A esquisitice não está ali, mas na forma como o chamado "mercado" dogmatiza uma política econômica acomodada aos seus interesses, centrada na expectativa de juros elevados e de elevados superávits fiscais primários, a ponto de acreditar que é melhor ter um ministro da fazenda "confiável" sob o ponto de vista de manutenção do status quo no setor financeiro, ainda que este ministro se enrede em práticas não muito éticas, lesivas aos interesses nacionais. É a lógica da avestruz, quando se prefere enterrar a cabeça em um buraco bem fundo, evitando assim ver, ouvir e falar sobre o que não interessa. Ao virar o rosto para os indícios de malversação do dinheiro público enquanto se extasia com superávits fiscais garantidos às custas de uma crescente e indiscriminada tributação, ao enterrar a cara na terra para ignorar as suspeitas de comportamentos antiéticos envolvendo aqueles que "garantem" a manutenção de uma política econômica focada nos interesses do sistema financeiro, o chamado "mercado" funciona como partícipe do enredo. Por omissão, ajuda a perpetuar possíveis esquemas de corrupção que se valem da política dos juros altos e dos "ajustes" fiscais mal amarrados como espécies de moedas em troca do "reconhecimento tácito", implícito em relatórios e em boletins de análise de bancos e consultorias, de virtudes tão caras como a honestidade, a ética e o comprometimento com o bom emprego do dinheiro público. O receio de mudanças na tal política econômica toma a forma perversa da especulação, que mexe com o preço dos ativos para cima e para baixo, garantindo ganhos para muitos no chamado "mercado". Que se dane o resto! Afinal, tudo continuaria na calmaria de antes se não tivesse ocorrido a troca de ministros, ainda que à boca pequena e mesmo a bocas maiores crescessem as suspeitas de envolvimento do ministro demitido, considerado o "alicerce da política econômica", com fatos um tanto obscuros e ainda não explicados. Pobre país esse que se move à mercê de interesses de grupos específicos cada vez mais consolidados em detrimento dos interesses maiores da nação.

-------------------------------------------------------------------------------- Independente de quem vença as eleições, o chamado "mercado" sempre reagirá contra qualquer mudança de rota na política econômica --------------------------------------------------------------------------------

O corajoso Guido Mantega tem diante de si uma escolha fatal: seguir sua própria consciência e praticar a política econômica na qual sempre acreditou a vida toda, voltada para o setor produtivo, ou submeter-se à ditadura do chamado "mercado", que já o está a colocar em teste. O processo de desvalorização do real é a face explícita disso. Já aconteceu antes. Na forma de aviso ao candidato Lula, no segundo semestre de 2002, o dólar disparou e, como todos se recordam, chegou a valer R$ 4,00, um custo alto que a toda a sociedade teve de pagar por mais de um ano para cobrir os ganhos da especulação financeira. Os opositores de Lula, mesmo aqueles que comungam da mesma visão desenvolvimentista de Mantega, já começaram a lançar petardos contra uma eventual guinada da política econômica. Preferem a manutenção da austeridade monetária por motivos políticos momentâneos: desse modo fica mais fácil atacar os juros altos e a tremenda carga tributária imposta pela equipe anterior em nome de uma falsa austeridade fiscal. Essa assimetria entre discursos e posicionamentos, para não dizer contradições lançadas ao ar por pura conveniência política, não afeta apenas o presidente Lula na condição de candidato à reeleição. Também deve perturbar a mente do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, às vésperas de deixar o posto para se lançar ao processo de disputa eleitoral deste ano. Assim como Lula, o candidato do PSDB à Presidência da República não escapará da árdua tarefa de optar entre uma política econômica calcada no viés financeiro e uma política mais voltada para a atividade produtiva privada. O chamado "mercado" preferiu Alckmin a José Serra na disputa interna do PSDB por acreditar que o atual governador, tão comprometido com o ajuste fiscal (objetivo perseguido deste a era de Mário Covas), está mais identificado com os interesses do setor financeiro. Médico por formação, Alckmin terá de confiar a plataforma de sua política econômica aos economistas do PSDB. Mas não admira se estiver meio perdido. O que ouve da boca dos economistas da PUC do Rio, formuladores do bem sucedido Plano Real, vai com certeza em direção oposta do que escuta dos economistas mais desenvolvimentistas e menos ortodoxos, no reduto paulista, defensores da queda dos juros e do câmbio fixo. Não pensem, leitores, que a novela terá terminado a partir de janeiro do ano que vem. Independente de quem vença as eleições, e do grau de honestidade do ministro da Fazenda do próximo governo, o chamado "mercado" sempre reagirá contra qualquer mudança de rota na política econômica. Correção: Robin Hood, diz a lenda, viveu nas florestas de Sherwood, na Inglaterra. Daí a confusão, não justificável, que levou esta colunista a se referir, erroneamente, ao famoso ladrão como Robin Wood no texto da coluna da semana passada, publicada em 23 de março. Perdão aos leitores e a Paulo Arvate que fez menção a Robin Hood ao comentar sobre o direcionamento dos recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE) para gastos com salários da burocracia do setor público no Norte e no Nordeste do país.