Título: Meu blog começou como um exorcismo
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 30/05/2010, Mundo, p. 24

Entrevista - Yoani Sánchez

Ativista cubana que usa a internet para denunciar violações dos direitos humanos fala sobre a opressão na ilha e critica o presidente Lula

Enquanto muitos de seus conterrâneos escolheram o silêncio, ela optou por levar sua voz e sua indignação o mais longe possível, para além do Mar do Caribe. Formada em filologia, Yoani Maria Sánchez Cordero, 35 anos, transformou-se em um dos principais nomes da dissidência política em Cuba. Em 9 de abril de 2007, criou o Generación Y, um blog comparado por ela a um exorcismo. ¿Usei-o para expulsar toda essa frustração generalizada¿, afirma. A página na internet rendeu-lhe a inclusão na lista das 100 pessoas mais influentes do planeta, da Times Magazine. Em novembro de 2009, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, escreve que o Generación Y ¿fornece ao mundo uma janela única na realidade do cotidiano em Cuba¿. Bem articulada, Yoani não se deixa ser varrida pela fama. Mantém o foco em sua missão de informar as violações dos direitos humanos em uma ¿Cuba real¿, distante dos folhetos das agências de turismo ou da propaganda oficial castrista. Em entrevista exclusiva ao Correio, por telefone, de Havana, ela condenou a existência de mais de 200 presos políticos nos calabouços do regime comunista e admitiu ter sofrido uma série de represálias. Também atacou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem acusou de estar preso a uma Cuba ¿idílica e utópica¿. Os textos publicados no blog deram vida à obra De Cuba, com carinho, livro lançado pela Editora Contexto. ¿É uma janela aberta para a Cuba real. Os leitores podem tratá-lo como o diário de uma mulher de 35 anos que se pergunta por que seu país não se parece com o que lhe foi prometido quando criança¿, explicou.

Quais são as condições dos presos políticos em Cuba? A opinião livre está penalizada em Cuba. De modo que se constitui um delito criticar e divergir do Estado, sob pena de uma ampla gama de castigos. As punições vão desde a estigmatização social e as ameaças até a prisão. Em Cuba, existem atualmente mais de 200 presos por motivos políticos. Especialmente, 53 deles pertencem à chamada causa da Primavera Negra de 2003. Na época, 75 jornalistas e opositores independentes acabaram no cárcere, fundamentalmente por escrever contra o governo ou por ter uma postura contestadora. O estado atual deles é muito delicado. A maioria se enfrenta fora de suas províncias, em prisões de segurança máxima, a centenas de quilômetros de suas casas. Sobre eles, se exerce a pressão psicológica e física, com castigos. Por exemplo, a possibilidade de esses presos verem seus familiares é muito espaçada: somente uma visita a cada três meses. O governo cubano está em um beco sem saída, com a permanência dessas pessoas em prisões. Agora mesmo, a Igreja Católica e o governo realizam negociações para liberar pelo menos os 26 detidos que têm a saúde mais delicada. Mas nenhum deles deveria estar na prisão. Por outro lado, essas negociações só foram possíveis por causa da pressão interna e internacional ocorrida nos últimos meses. A pressão por parte das damas de branco, da União Europeia e de outros países.

E a situação dos direitos humanos na ilha? O estado atual dos direitos humanos na ilha é bastante negativo para a maior parte dos cidadãos. Os direitos humanos à associação, à livre expressão, praticamente não podem ser exercitados. Além disso, há uma série de direitos à agrupação econômica e à possibilidade de pronunciar-se contra o governo que não é respeitada. Uma vez que os cidadãos cubanos começam a aplicá-los, sofrem uma penalidade. Nós, cubanos, estamos vivendo um ponto de inflexão, que pode desembocar em um grande caminho de democratização e aberturas ou pode terminar em maior centralismo e controle. É preciso que nós estejamos muito atentos. Precisamos da solidariedade de todo o mundo. O ciclo de silêncio terminou. Vamos ver se nossa voz se projeta para melhorar o país ou cairemos no caos ou na violência.

Mas é possível dispor de liberdade de expressão com Raúl Castro no poder? Lamentavelmente, são totalmente incompatíveis. Raúl Castro tem um pecado original, incapaz de se solucionar. Ele não é um presidente eleito pelo povo. É dono de uma nação como se fosse de um feudo familiar. Seu principal objetivo é conservar o poder, a cadeira presidencial. Ele sabe que precisa fazer mudanças, mas também sabe que algumas dessas transformações podem fazê-lo perder o controle sobre o país. Ele talvez faça hipotéticas aberturas no campo econômico, mas tratará de manter o controle absoluto sobre as vidas política e social. Não há possibilidade de democracia com ele no governo.

Quando e por que a senhora decidiu criar um blog para denunciar as arbitrariedades do regime castrista? Comecei meu blog em abril de 2007. Eu me lembro que os motivos eram múltiplos. Fundamentalmente, sentia em meu interior uma saturação de histórias a contar, de perguntas a responder, de coisas da realidade que estavam se perdendo, porque não eram mostradas pela imprensa oficial. Meu blog começou como um exorcismo, para expulsar toda essa frustração generalizada, a frustração de uma cidadã que havia se acumulado.

Esse exorcismo tem sido bem-sucedido, na sua opinião? O blog permitiu-me projetar minha voz para dentro e para fora de Cuba, afastar os demônios do medo pela indiferença e pela apatia social. Contudo, creio que ainda tenho muito a contar. Ainda não colocamos o combustível inicial do blog. Todavia, a Cuba real segue subestimada e escondida pela propaganda oficialista e pela propaganda turística. Tenho muitíssimas razões e motivos acumulados para continuar escrevendo.

A senhora já sofreu perseguição por ter se tornado uma voz dos direitos humanos em Cuba? As penalidades que venho sofrendo têm sido variadas. Elas vão desde a estigmatização social à impossibilidade de sair de meu país ¿ nos últimos dois anos não pude viajar, apesar de vários convites internacionais. Também incluem a intimidação física e verbal, incitações policiais, vigilância, telefones apreendidos. Em duas ocasiões ¿ em 6 de novembro de 2009 e em 24 de fevereiro deste ano ¿, sofri agressão física. Não sou vítima. Sou profundamente responsável pelo que faço em meu blog. O presidente Lula esteve com Fidel Castro um dia depois da morte de Orlando Zapata Tamayo e considerou ter se reunido com um ¿companheiro¿. Como vê a aproximação do Brasil com o regime? O presidente Lula está preso a uma imagem da Cuba do passado, dessa Cuba idílica e utópica. Deve ser difícil para ele reconhecer que isso não existe. Ele continua pensando que a Cuba atual é como um lugar sonhado, não? Valeria a pena que ele submergisse na realidade cubana e se aproximasse de nós, cidadãos, para comprovar que essa Cuba vendida pelo turismo não existe. Por outro lado, muitos laços culturais e históricos nos unem. Por isso, o Brasil deveria prestar uma maior solidariedade à população cubana. Não creio na diplomacia dos palácios de governo ou das chancelarias. Creio na diplomacia popular, essa é que precisa se fortalecer.

A senhora pediu ajuda a Lula para vir ao Brasil. Qual foi a resposta e o motivo da viagem? Estou trabalhando em um processo para poder visitar o Brasil, na segunda metade de julho, quando em um pequeno povoado da Bahia será apresentado um documentário cuja temática é sobre os cubanos e sobre minha pessoa. Também farei a apresentação de meu livro. Já fiz muitas gestões, inclusive com o presidente brasileiro. Mas não há uma resposta conclusiva. Tenho esperança de poder visitar o Brasil. Que impactos a morte de Zapata e a greve de fome de Guillermo Fariñas causaram no regime de Raúl Castro? A morte de Orlando Zapata Tamayo foi muito lamentável. No entanto, serviu como elemento aglutinador da oposição dentro de Cuba. Até esse momento, as contradições e a própria penetração que o Estado havia feito nos grupos opositores e independentes haviam criado muita dispersão. A indignação causada pela greve de fome deste homem funcionou como elemento de união. Em poucas semanas, todos os inconformes, os indignados e os críticos estávamos unidos na dor. Por outro lado, a greve de fome de Fariñas tem mostrado ao mundo a cabeça dura do governo, que, em lugar de conceder anistia aos presos políticos, encerrou-se numa posição de intolerância e inflexibilidade. Ainda que eu não compartilhe da greve de fome como método de luta. Mas sei que um cidadão tem que chegar ao limite de usar seu corpo como forma de protesto. Isso ocorre em países nos quais o governo cortou os outros caminhos para a expressão de seus cidadãos.