Título: Impacto da reforma do Estado no mercado da gasolina
Autor: Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt
Fonte: Valor Econômico, 31/03/2006, Opinião, p. A14
A reforma do Estado marcou a última década no Brasil, quando o governo passou de empresário a regulador e formulador de políticas públicas em muitos setores. Ela começou a ser desenhada com a aprovação da Lei de Concessão dos Serviços Públicos (Lei nº 8987/95), passou pela desestatização de empresas, que trouxe consigo um maior nível de investimento privado, introduziu a competição em alguns mercados e foi acompanhada de uma maior abertura da economia. Neste novo ambiente, os órgãos antitrustes brasileiros e as agências reguladoras passaram a ter um papel fundamental para o bom andamento dos mercados. Não à toa, em 1994 foi criada a Lei de Defesa da Concorrência (Lei 8.884) e, de 1996 em diante, foram sendo criados os distintos órgãos reguladores setorias, como a Aneel (Lei 9.427/96), a ANP (Lei 9.478/97) e a Anatel (Lei 9.472/97). Esta transformação contribuiu para melhorar o desempenho da economia, de forma geral, e a distribuição e o varejo de gasolina, em particular. Uma avaliação sobre a reforma ocorrida nesse setor mostra que, apesar da relação custo/benefício da reforma ser pequena, nota-se que ela pode ser menor, uma vez que os custos sociais ainda são elevados. Até 1997 o preço da gasolina tipo C, na bomba, era regulado pelo governo. Havia um preço tabelado em todo o país. Como a estrutura do varejo é distinta não somente entre Estados, mas também intra-Estados, e como há custos de transporte diferentes entre estes diversos lugares, o governo concedia subsídios às distribuidoras para que fossem "devidamente recompensadas" onde tivessem perdas. Após aquele ano, pôde-se observar a liberalização gradual dos preços, assim como a eliminação dos mencionados subsídios. O objetivo norteador da reforma foi outorgar ao mercado a responsabilidade por estabelecer seu preço de equilíbrio, sem a interferência do governo, e atribuir ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e à Agência Nacional do Petróleo (ANP) o papel de proteger a competição, tanto do ponto de vista econômico como técnico. Ao se estabelecer uma comparação entre a estrutura de mercado antes e depois de 1997, nota-se que o mercado de distribuição e varejo, conjuntamente, tinha, e continua tendo, uma relação preço/custo marginal próxima a da concorrência perfeita, tomando em consideração 90% do consumo nacional, representado por 11 Estados brasileiros. Isto significa que a reforma foi inócua? Não. Neste mercado, o choque regulatório de 1997 trouxe consigo alguns inquestionáveis benefícios para a sociedade. O primeiro, e mais importante, foi que, como antes daquele ano o preço era controlado e, para evitar prejuízos, subsídios eram concedidos às empresas, a margem preço/custo marginal pequena não refletia necessariamente lucro (total) econômico zero. Depois dessa data, esta margem pequena passou a expressar realmente a estrutura competitiva do mercado. A transparência que passou a haver na relação "preço-custo-lucro" depois da reforma foi um dos principais benefícios para a sociedade. O preço passou a ser mais informativo.
-------------------------------------------------------------------------------- Setor mostra que devido a falhas de mercado, uma indústria competitiva exige a presença de um Estado regulador forte --------------------------------------------------------------------------------
Outros benefícios vieram, como o aumento do estímulo à busca pela eficiência. Com uma competição acirrada em ambos os segmentos, as empresas passaram a ajustar com mais rigor seus gastos vis-à-vis suas necessidades e a se preocupar mais com a qualidade de seus serviços ao cliente. Por outro lado, a qualidade do produto passou a ser bastante questionada. Com a reforma, muitas empresas entrantes passaram a coexistir com as "empresas tradicionais ou incumbentes" (Texaco, Shell, Esso, Ipiranga/Atlantic, Petrobras), tanto na distribuição quanto no varejo. Com isso, muitas empresas entrantes, pouco preocupadas em preservar suas marcas, passaram a inundar o mercado com gasolina adulterada. Em conseqüência de atuação pouco eficiente da ANP no tocante à regulação técnica, as "empresas de marca" passaram a sofrer duplamente. Primeiro, por terem de investir em marketing para demonstrar à sociedade que a gasolina vendida por elas era de qualidade, tendo um custo adicional, supostamente desnecessário. Segundo, porque os preços na bomba advindos das empresas "falsificadoras" acabavam sendo, em vários momentos, menores até do que o custo daquelas de marca, gerando concorrência desleal. Além deste "custo social" proveniente da reforma, houve um outro: a famosa "guerra das liminares", iniciada ao redor de 2000, que corroborava ainda mais com a prática do preço predatório entre as empresas. Neste caso, o causador era o Poder Judiciário, que concedia liminares favoráveis a algumas das empresas entrantes para que não pagassem os tributos impostos às "incumbentes", ameaçando o equilíbrio competitivo no setor. Mais uma vez ressurge a pergunta: isto significa que a reforma foi inócua? A reposta novamente é não. Não há dúvida de que, passada quase uma década, do ponto de vista econômico, uma avaliação da reforma no mercado do varejo da gasolina mostra que houve benefícios para a sociedade. A combinação "fixação de preços e subsídios" certamente distorcia os incentivos econômicos aos agentes envolvidos, gerando elevadas ineficiências para a sociedade. O que continua ruim e, portanto, precisa ser aprimorado, é a fiscalização inadequada por parte do agente regulador (regulação técnica), no tocante à adulteração da gasolina, e o veredicto incorreto do Poder Judiciário, permitindo (legalmente!) que algumas empresas pratiquem preços predatórios em relação às suas concorrentes. Esse setor, assim, é mais um exemplo de que, devido à presença de "falhas de mercado", uma indústria, mesmo com características competitivas (como a da gasolina), exige a presença de um Estado regulador forte. Uma regulação não econômica débil pode afetar sobremaneira os incentivos econômicos aos agentes, gerando sérios problemas competitivos.
Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt é diretora de economia da Compañía de Comercio y Exportación de Puerto Rico, doutora em economia pela EPGE/FGV e ex-secretária adjunta da Seae/Ministério da Fazenda. Email: schmidt@prtc.net.