Título: Otimismo e tragédia no horizonte de médio prazo
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 31/03/2006, Opinião, p. A15

O mercado embarcou em um novo ciclo de otimismo que nada parece abalar, ou pelo menos assim parecia até a saída de Antonio Palocci do governo. Toda semana a Bovespa bate um novo recorde, o risco-país cai um pouco mais e as projeções do mercado delineiam um futuro mais róseo. De acordo com a média das expectativas do mercado apuradas pelo Banco Central, o juro real (Selic) deve cair até o fim do ano para 9,3%, fechando 2010 em 6,3%; o real terminar 2010 valendo quase 10% a mais do que em 2005 (em termos reais); e a inflação não superar os 4,5%. Nossos problemas macroeconômicos estão equacionados, parece dizer o mercado. Será verdade? Pode ser, mas há dois elementos perturbadores nesse cenário. Um, que não é a primeira vez que o mercado se mostra tão otimista, e erra feio. Em março de 2001, previu uma Selic de 13,7% no fim do ano, contra uma taxa efetivamente observada de 19,0%. Em 2004, a previsão em março era de 13,6%, mas a Selic fechou o ano em 17,75%, e em alta. Poucas vezes, ou quase nunca, o "mercado" previu com alguma antecedência um aperto monetário. Outro, que o otimismo do mercado financeiro não contagiou o lado real da economia. As empresas vêm tendo lucros altíssimos, mas não os usam para expandir fortemente a capacidade de produção. Parecem preferir distribuir dividendos, abater dívidas, em especial a externa, e investir fora: neste início de ano, o investimento brasileiro direto no exterior superou o realizado por estrangeiros no país. Isso ajuda a explicar por que em 2003/05 o Brasil registrou a mais baixa taxa trianual de investimentos em mais de três décadas. É possível que essa diferença de visões desapareça com o tempo. Esta é a premissa implícita nas contas do mercado financeiro. Mas essa não é a única possibilidade. Os dois setores reagem a estímulos diferentes, e o que está bom para um pode não estar para o outro. Em especial, o investimento fixo é menos líquido e mais sujeito a certos riscos de expropriação do que o financeiro. É mais fácil desmontar uma aplicação financeira do que uma fábrica. Além disso, a tributação, que caiu para o estrangeiro que investe em títulos públicos, não pára de subir no setor real da economia. Neste sentido, é oportuna a recém-publicada avaliação do "Economic Intelligence Unit" sobre o ambiente de negócios nas 82 maiores economias do mundo, em que o Brasil foi outra vez rebaixado, caindo agora da 42ª para a 45ª posição.

-------------------------------------------------------------------------------- É difícil que a expansão da demanda que resultará da queda dos juros não esbarre rapidamente nos limites ao aumento da oferta --------------------------------------------------------------------------------

A falta de um clima adequado de investimento se deve bastante à priorização cada vez maior das políticas e práticas redistributivas - não necessariamente do mais rico para o mais pobre - em detrimento das promotoras do crescimento. É papel da política econômica equilibrar a busca de crescimento com a equidade de oportunidades, taxando para isso os que se houveram melhor. A legislação, por sua vez, explicita o contrato social que rege essa taxação, garantindo que apenas o Estado possa fazer essa redistribuição coerciva. No Brasil, falta equilíbrio na política econômica e respeito à legislação. A ampliação vertiginosa dos gastos com Previdência e assistência social, sem a eliminação de outras despesas correntes, elevou a carga tributária a um patamar incompatível com nosso nível de renda, derrubou o investimento público e sequer melhorou a distribuição de renda, pois falta foco ao gasto público social. O Brasil também apresenta um elevado déficit de segurança jurídica. Governo e agentes privados deixam sistematicamente de cumprir com as regras e os contratos sem sofrerem as sanções previstas. Os direitos de propriedade também são regularmente expropriados, sem a aplicação de sanções, formais ou informais, como exemplifica a destruição dos laboratórios da Aracruz. Como o governo taxa, mas não investe, e nem dá segurança para o investidor privado fazê-lo, a infra-estrutura vai se deteriorando, reduzindo a produtividade e a atratividade dos demais investimentos. As estradas que aí estão são as mesmas de há 20 anos, depreciadas e congestionadas; o novo modelo do setor elétrico fracassou em atrair o investidor privado; e as PPPs nunca saíram do papel. O que é legal tornou-se ineficiente e o ilegal virou parte do cotidiano. Roubos, assaltos, seqüestros, saques, corrupção e invasões de terra e imóveis urbanos, que são formas de forçar uma redistribuição de riqueza, tornaram-se corriqueiras no Brasil, mas nem por isso sem conseqüência. Há um elemento de tragédia humana na forma como a freqüência de certos crimes faz com que as pessoas não mais se comovam com eles, a não ser quando algo de muito incomum ocorre, como bem observou a escritora inglesa Mary Ann Evans há mais de um século. Mas há mais do que só apatia por trás da falta de reação ao desrespeito à lei. Há também a tolerância com o que é ilegal, mas percebido como promovendo a "justiça social", das invasões de terra a tipos variados de violência. Esse tipo de visão agrava o quadro de "tragédia dos comuns", como é conhecido em economia, em que a sociedade brasileira está mergulhada: governo e agentes privados tentando extrair cada vez mais recursos de um conjunto limitado de riquezas, na presença de externalidades negativas importantes - todas as empresas com investimentos em pesquisa devem estar pensando em transferi-los para jurisdições mais seguras depois do quebra-quebra promovido pelo MST. Essa tragédia, as externalidades negativas, e a dificuldade de obter uma solução coordenada também estão presentes na política. Há boas razões para a avaliação positiva que o mercado financeiro faz da economia brasileira, como a melhoria dos indicadores de solvência externa. Mas a dívida pública continua alta e só não subiu nos dois últimos anos devido à apreciação do real, que também foi fundamental no processo de desinflação. É difícil acreditar que o real se valorize tanto nos próximos anos. Além disso, o Brasil mergulha cada vez mais em um jogo distributivo de soma negativa que reduz o seu potencial de crescimento. Sem que isso mude, é difícil acreditar que a expansão da demanda que resultará da queda dos juros não esbarrará rapidamente nos limites impostos pelo lento aumento da oferta.