Título: A Itália sobreviverá a Berlusconi?
Autor: Ferdinando Targetti
Fonte: Valor Econômico, 31/03/2006, Opinião, p. A14

Se, como parece provável, a história vai considerar Silvio Berlusconi como um inconseqüente primeiro-ministro da Itália, certamente se lembrará dele como um ministro extraordinário - extraordinariamente bizarro. Prometer uma coisa e fazer outra não foi uma fraqueza de seu governo, mas sim seu princípio organizador. Em vista da inconstante natureza do comando de Berlusconi, não é de surpreender que, desde a eleição de 2001 que o reconduziu ao poder, a l'Unione, coalizão de centro-esquerda, venceu todas as eleições subseqüentes - administrativas, regionais e européias. Apesar disso, as chances da esquerda nas próximas eleições parlamentares estão longe de asseguradas, e Berlusconi parece longe de condenado à derrota. Em vista das condições econômicas do país, seria de imaginar que a Itália estaria madura para uma mudança decisiva. Nos últimos quatro anos, o crescimento médio das rendas foi de mero 0,3%, em comparação com 1,5% na União Européia (UE), e, nos últimos dois anos, a dívida pública começou novamente a crescer. Além disso, a estratégia da Casa della Libertà, coalizão do governo de centro-direita de Berlusconi, foi não fazer ondas e apenas esperar pela retomada da economia européia, em vez de atacar as dificuldades estruturais italianas. Em conseqüência disso, o governo é criticado não apenas pelos sindicatos, mas também pela Confindustria, associação dos empregadores, que em 2001 deu forte apoio ao primeiro-ministro Berlusconi. Ademais, há os atuais conflitos de interesse entre o Berlusconi-primeiro-ministro e o Berlusconi-magnata, beneficiário de concessões de serviços públicos que fazem dele um semimonopolista na mídia e em publicidade televisiva. Durante o mandato de Berlusconi, seus enormes ativos pessoais triplicaram. Embora sua maioria parlamentar tenha aprovado muitas leis que promovem seus interesses pessoais e tenha aliviado algumas de suas dificuldades legais, no início de março, Berlusconi foi novamente acusado de corrupção e de fraude tributária. Os ministros de Berlusconi não se comportaram melhor. Dois foram obrigados a renunciar com um intervalo de um mês. Roberto Calderoli, um destacado político da Lega Nord, terceiro maior partido no governo, provocou reações de protesto nas ruas da Líbia ao vestir uma camiseta impressa com a infame charge do profeta Maomé. Francesco Storace, o ex-ministro da Saúde e membro destacado da Alleanza Nazionale, segundo maior partido no governo, é suspeito de ter organizado um esquema de espionagem política, num Watergate a la italiana. Mas, apesar do catastrófico histórico econômico e ético do governo, as pesquisas de intenção de voto indicam uma vantagem de cerca de apenas quatro pontos percentuais para l'Unione - margem demasiado estreita, tendo em vista o alto número de eleitores indecisos, para prever o resultado eleitoral. Assim sendo, o que é que está mantendo Berlusconi e sua coalizão na disputa?

-------------------------------------------------------------------------------- As chances da esquerda nas próximas eleições italianas estão longe de asseguradas, e o primeiro-ministro parece longe de condenado à derrota --------------------------------------------------------------------------------

Acima de tudo, a campanha eleitoral de Berlusconi visa, à maneira da campanha pela reeleição do presidente Bush em 2004, energizar seu núcleo fiel de correligionários e mobilizar o crescente número de eleitores que se abstiveram nos últimos anos. Para isso, ele não hesitou em usar seu semimonopólio sobre a televisão para exaltar as alegadas realizações de seu governo. A retórica de sua campanha transborda anticomunismo com uma ênfase não vista na Itália desde 1948, associada a uma defesa da família e de valores prezados pelo establishment católico romano, embora a Igreja tenha, até agora, resistido a ser envolvida na campanha. A coalizão de Berlusconi é também beneficiária da debilidade do l'Unione. Seu líder, Romano Prodi, obteve uma extraordinária aprovação popular quando mais de quatro milhões de pessoas nele votaram nas primeiras prévias eleitorais realizadas na Itália. Mas Prodi continua a ser um líder-sem-partido de um número excessivo de partidos. É verdade que a coesão do l'Unione cresceu: os dois principais partidos (Democratici di Sinistra e Democrazia e Libertà - la Margherita) estão unidos sob o símbolo da oliveira, os outros partidos endossaram um detalhado programa governamental de 280 páginas e o Partito della Rifondazione Comunista, de esquerda, deu claros sinais de moderação e lealdade à coalizão. Para o eleitorado, porém, perdura uma percepção de fragilidade. Finalmente, a incerteza do resultado eleitoral reflete não tanto o comportamento dos eleitores, mas uma modificação no sistema eleitoral. Durante a década passada, a Itália usou um sistema de maioria eleitoral corrigido por quotas proporcionais. Sob esse sistema, a Casa della Libertà traduziu uma estreita maioria popular em 2001 numa decisiva maioria parlamentar. Mas, com o mesmo resultado no horizonte, neste ano, para a l'Unione, a maioria parlamentar de centro-direita mudou a legislação eleitoral apenas poucos meses antes do fim de seu mandato. Isso lembra um exército que, temendo a derrota no campo de batalha, envenena os poços ao bater em retirada. Um sistema proporcional na ausência de preferências individuais implica em que serão os secretários de partidos, e não os cidadãos, quem escolherão os deputados, e na ausência de um limiar eleitoral efetivo, o número de partidos proliferará. Embora a cédula eleitoral vá ter 40 centímetros de comprimento para acomodar todos os símbolos dos velhos e novos partidos, ela não conterá o nome de um único candidato sequer. Mas o pior problema é que o sistema de maioria para os senadores poderá resultar em que maiorias distintas obtenham o controle do Senado e da Câmara de Deputados (a casa baixa do Parlamento), o que poderá resultar em paralisia legislativa. Além disso, o mandato do presidente Carlo Azeglio Ciampi termina ao mesmo tempo em que o Parlamento é dissolvido, o que significa que seu sucessor, eleito pelo novo Parlamento, teria de formar um gabinete sem maioria em ambas as casas. Berlusconi e Prodi descartaram a formação de uma grande coalizão, à maneira dos alemães - um desfecho que parece particularmente improvável depois de uma campanha eleitoral na qual ambos os contendores sugeriram enfaticamente que seus adversários não têm um direito legítimo de governar. Ao mesmo tempo, realizar mais uma eleição deixaria pendente a questão da legislação eleitoral. O enigma da sobrevivência de Berlusconi reflete uma charada mais abrangente que envolve a Europa. Muitos europeus, e não apenas os italianos, estão nervosos e inseguros sobre para onde está caminhando o continente. Por isso, não é de surpreender que um oportunista e charlatão como Berlusconi continue sendo ouvido. Os italianos precisam decidir sobre o tipo de Itália que desejam, se quiserem ter os líderes da estatura que necessitam.

Ferdinando Targetti é professor de Economia na universidade de Trento e ex-membro da comissão de Finanças do Parlamento italiano. © Project Syndicate 2006. www.project-syndicate.org