Título: EUA e Brasil devem ceder mais, diz Mandelson
Autor: Raquel Landim
Fonte: Valor Econômico, 31/03/2006, Especial, p. A16

O comissário de Comércio da União Européia, o inglês Peter Mandelson, criticou a pressa dos Estados Unidos em concluir as negociações da Rodada de Doha antes que a TPA (Trade Promotion Authority, autorização do Congresso dos EUA para que o Executivo conduza as negociações) expire no próximo ano. Ele afirma que o prazo funciona como "levar um revólver" para as negociações e dizer 'temos que fechar um acordo, senão...'. "Não posso negociar nesses parâmetros", disse. "Não podemos abandonar a ambição da rodada, por conta do calendário de um parceiro de negociação." Sérgio Zacchi/Valor Mandelson também classificou a proposta dos EUA de redução de subsídios agrícolas como "incompleta" e disse que o país precisa reformar seu sistema de ajuda alimentar, que muitas vezes funciona como um subsídio à exportação. "Nós esperamos paralelismo dos americanos", ressaltou. Segundo o comissário, a Europa está disposta, nas condições certas, a incluir menos de 8% de suas tarifas agrícolas como produtos sensíveis. Descartou que as cotas que serão oferecidas como compensação nesses casos cheguem aos 7,5% do consumo doméstico solicitados pelos agricultores brasileiros. "Não acredito que ninguém, seriamente, pense que podemos chegar a esse ponto." Mandelson afirmou que a sinalização brasileira de cortar um pouco mais que 50% de suas tarifas industriais - feita pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, durante reunião em Londres - não é aceitável. "Nem para nós, nem para os americanos." O comissário lamentou que o novo ministro da Fazenda, Guido Mantega, tenha descartado proposta do antigo titular, Antonio Palocci, de reduzir substancialmente as tarifas de importação. "Essa mudança de política terá forte impacto nas negociações da OMC e entre UE e Mercosul. Usar paredes de proteção para esconder a indústria oferece conforto limitado, mas, a médio e longo prazo, prejudica a competitividade", afirmou. Em um sinal de que a animosidade entre Mandelson e Amorim, que ficou evidente na reunião ministerial de Hong Kong, é coisa do passado, ele disse prestar uma homenagem à liderança do Brasil entre os países em desenvolvimento. Mandelson, na entrevista, defendeu o modelo europeu para a TV digital e criticou a Rede Globo, afirmando que a opção pelo modelo japonês atendia apenas aos interesses desta empresa. Em resposta, Roberto Irineu Marinho, presidente das Organizações Globo, esclareceu, "que todas as televisões abertas brasileiras, e não apenas a Globo, defendem o modelo de televisão digital que é o melhor para o público brasileiro, que tem o hábito de receber uma televisão gratuita de qualidade. As universidades brasileiras, que estudaram tecnicamente a televisão digital à pedido do governo federal, chegaram às mesmas recomendações". Quanto ao comissário europeu de comércio, Peter Mandelson, Roberto Irineu disse que não reconhece nele qualquer autoridade moral ou técnica para opinar sobre a Globo. Mandelson concedeu a entrevista ao Valor durante vôo entre São Paulo e Ribeirão Preto, por onde iniciou sua visita ao Brasil. O comissário conheceu ontem plantações de cana-de-açúcar na região e almoçou na fazenda do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. No final da tarde, seguiu para o Rio de Janeiro. Ele se reúne hoje e amanhã com Amorim, com o representante comercial americano, Robert Portman, e o diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), Pascal Lamy.

Valor: É possível atingir um esboço do acordo até o final de abril, como ficou acertado em Hong Kong? Peter Mandelson: Acredito que é desejável. Devemos nos esforçar para manter o prazo, mas estamos em estágio difícil, lidando com grandes números. Deixamos as questões mais delicadas para o final, logo é um desafio.

Valor: Os especialistas dizem que se a rodada não for concluída este ano, será um problema, porque a TPA expira este ano. O sr. concorda? Mandelson: Fomos informados pelos americanos que renovar a TPA será muito difícil, alguns dizem até impossível. Em um sentido, é como levar um revólver para a negociação e dizer que temos que fechar um acordo, senão... Não posso negociar nesses parâmetros. Farei o que for possível para obedecer o calendário, mas não podemos fazer cortes secos em questões complexas. Há muito em jogo para a economia global, particularmente para os países em desenvolvimento. Não devemos abandonar nossas ambições apenas por conta do calendário de um parceiro de negociação.

Valor: O que deve ser feito para desbloquear a negociação? Mandelson: Primeiro, presto uma homenagem à liderança do Brasil entre os países em desenvolvimento na rodada. Esses países têm muitos interesses em jogo, e o resultado pode se transformar em benefícios econômicos substanciais e oportunidades de comércio. Meu comprometimento pessoal é atingir essa meta, é por isso que a UE colocou muito na mesa: expressivos cortes de subsídios e novo acesso a mercados. Agricultura é central nessa rodada. É um trabalho incompleto da Rodada Uruguai. Mas, em qualquer negociação multilateral, você não pode falar apenas sobre uma questão. O compromisso de Doha deixa claro que é preciso liberar os mercados industriais e de serviços. Se as negociações falharem, os ganhos em agricultura, em particular para os países em desenvolvimento, serão perdidos e isso seria uma tragédia. Temos que evitar isso. Para completar a negociação, temos que ter o suficiente na mesa para permitir barganhas, o acordo deve ser balanceado e permitir que todos ganhem.

Valor: Os negociadores brasileiros dizem que a rodada depende de uma melhor oferta em agricultura da Europa, mas... Mandelson: Desculpe, mas não é o que o presidente Lula disse. Ele afirmou que todas as ofertas são insuficientes, que todos têm que fazer melhores ofertas para completar a rodada. O presidente deixou muito claro que não está simplesmente olhando para a Europa por uma melhor oferta agrícola. Ele deixou muito, muito claro que também olha para os EUA para completarem sua oferta, que foi apenas parcialmente apresentada. Também deixou claro que o G-20 (grupo de países em desenvolvimento, liderado pelo Brasil, que pede o fim dos subsídios agrícolas) e outros devem melhorar suas ofertas. Ele afirmou isso em Londres ao primeiro-ministro Tony Blair.

Valor: O sr. mencionou a oferta americana. A proposta dos EUA para redução de subsídios agrícolas é suficiente? Por quê?

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Mandelson: Não, porque está incompleta. Não oferece reduções substanciais no apoio doméstico. Não propõe disciplinas para muitos programas de subsídios. Eles também precisam reformar seu programa de ajuda alimentar, que muitas vezes se tornam subsídios à exportação. Nós propusemos eliminar todas as formas de subsídios à exportação até 2013. Esperamos paralelismo dos americanos.

Valor: O sr. disse que o tempo para movimentos unilaterais acabou e que a UE não colocará nova oferta agrícola na mesa de negociações. A UE pode ser mais flexível? Como? Mandelson: As pessoas querem ir mais fundo em agricultura, mas preciso ver o que mais há na mesa. Preciso ver o que está nas outras ofertas, o que foi feito pelos demais parceiros. Assim poderemos atingir um resultado equilibrado na rodada.

Valor: O setor agrícola brasileiro está muito preocupado com o acesso para os produtos sensíveis, especialmente o complexo carnes. Na Rodada Uruguai foram acertadas cotas equivalentes a 5% do consumo doméstico. Na Rodada Doha, é possível ampliar para 7,5% , como pedem os produtores brasileiros? Mandelson: Não acredito que alguém seriamente acredite que vamos chegar a esse ponto. Isso ainda não foi profundamente discutido. Mas me deixe fazer uma observação. Primeiro, o esboço de Doha permite que cada parceiro comercial identifique seus produtos sensíveis. Estamos simplesmente fazendo o que fomos convidados a fazer por esse esboço. Temos que chegar a um acordo sobre o número de produtos sensíveis, e isso é uma questão para as negociações. Falamos em no máximo 8% de nossas linhas tarifárias. Espero que, nas condições certas, seja possível ir abaixo desse nível. Nos comprometemos a melhorar o acesso ao mercado mesmo nos produtos sensíveis. Não apenas cortaremos as tarifas, como haverá uma cota razoável para assegurar acesso a um mercado adicional. Os termos do crescimento (das cotas) ainda estão em negociação. Por fim, devemos agora comparar o acesso adicional aos produtos agrícolas sensíveis, que somos solicitados a dar em qualquer circunstância, e as flexibilidades oferecidas pelos países em desenvolvimento aos produtos industriais sensíveis. Para alguns produtos industriais, não será permitido qualquer melhora no acesso ao mercado.

Valor: Na reunião de Londres, o ministro Celso Amorim sinalizou que o Brasil pode cortar suas tarifas industriais em um pouco mais que 50%. Essa oferta é suficiente? Mandelson: Não é aceitável. Nem para nós, nem para os Estados Unidos. Vamos deixar isso claro. A sugestão de cortar as tarifas em 50% não afetará a maior parte das tarifas aplicadas e as demais serão afetadas de forma modesta. O acesso a mercado adicional é mínimo e representará um benefício muito pequeno para os parceiros comerciais do Brasil. Em comparação com a agricultura, onde um acesso a mercado adicional significativo foi proposto, é tão desbalanceado que é impraticável.

Valor: O ex-ministro Antonio Palocci defendia uma proposta de expressivo corte das tarifas de importação de produtos industriais, para aumentar a competitividade da indústria brasileira. Em sua primeira entrevista coletiva, seu substituto, Guido Mantega, descartou a idéia, argumentando que a valorização do real já funciona como uma queda na proteção real da indústria. A atitude desapontou a UE ? Mandelson: Se houver mudança tão forte na (orientação da) política, acredito que haverá um grande impacto nas negociações da OMC e nas discussões entre Mercosul e UE. Mudarão as bases da negociação, alterando os objetivos significativamente. Ficaria surpreendido se essa política for seguida, porque será um afastamento substancial das políticas atuais do Brasil. Na minha visão, também não favoreceria os interesses brasileiros. De uma maneira simplificada, usar paredes protetoras para esconder a indústria brasileira oferece um conforto limitado, mas, no médio e longo prazo, prejudica a competitividade da indústria brasileira. Torna mais difícil enfrentar e vencer a competição internacional. Levará a uma deterioração da participação do Brasil nos mercados internacionais. Não consigo ver como isso atenderia os interesses do Brasil no longo prazo.

Valor: Serão realizadas eleições presidenciais no Brasil no fim do ano. Geralmente, quando há eleições, é mais difícil para um país fazer concessões nas negociações comerciais. O sr. acredita que o processo eleitoral no Brasil afetará as negociações da OMC? Mandelson: Espero que não, porque, independente de quem é governo no Brasil, os interesses econômicos da nação são os mesmos. E esses interesses são uma economia mais competitiva na agricultura, na indústria, mercados progressivamente mais abertos e uma política comercial liberal. E é assim que a economia brasileira será dirigida ao crescimento no médio e no longo prazo, que o investimento crescerá, que os empregos serão criados. Espero que esses interesses nacionais recebam apoio dos candidatos de todos os partidos. Isso deve ficar claro durante a campanha eleitoral.

Valor: O sr. afirmou que só pode terminar as negociações entre o Mercosul e a UE após a conclusão da Rodada Doha. Foi um pouco desapontador para os negociadores brasileiros... Mandelson: Não é desapontador de forma alguma. Usei exatamente a mesma linguagem do ministro Amorim. Ele diz que a Rodada Doha deve ser uma prioridade e eu concordo.

Valor: Alguns analistas dizem que a UE perdeu o interesse em um acordo com o Mercosul, porque as negociações da Alca estão paralisadas. O sr. concorda? Mandelson: A verdade é o contrário disso. Na semana passada, tivemos reuniões técnicas em Bruxelas, nas quais discutimos um interessante documento que foi escrito e colocado na mesa pelo Mercosul. Isso provocará um novo documento, que será apresentado pelo lado europeu. Longe de estarem paradas, as negociações estão sendo conduzidas de uma forma construtiva no nível técnico. Discuti o acordo no âmbito político em Buenos Aires. Devo fazer o mesmo com o ministro Amorim, no Rio. O motivo principal de minha vista ao Brasil são as relações bilaterais com a UE, mas também vamos discutir como podemos progredir nas negociações UE-Mercosul. Estou feliz por acrescentar essa discussão da OMC em paralelo. UE e Brasil têm profundos e antigos laços econômicos. Fazemos uma grande quantidade de negócios juntos e podemos fazer mais. Acredito que a força de nossos laços políticos deve ser profunda e deve se nivelar à força de nossa parceria econômica. Minha motivação para estar no Brasil é clara. Queremos aproximar fortemente as relações entre a UE e o Brasil e levar adiante as negociações com o Mercosul.

Valor: O Brasil está decidindo o padrão de TV digital que adotará, se o europeu ou o japonês. Esse tema faz parte da agenda da sua visita? Mandelson: Sim. Espero que os ministros brasileiros avaliem a questão de forma objetiva, e não simplesmente pelos interesses da Globo. As ligações entre eles e os japoneses são de domínio público. Não se deve confundir o interesse de uma companhia com o interesse de um país. O padrão europeu oferece uma opção mais barata, um padrão internacional, e grandes oportunidades tecnológicas e de exportação. Em contraste com o padrão japonês, que isolaria o Brasil internacionalmente e não ofereceria a mesmas possibilidades de produção e criação de empregos no país.

Valor: O governo brasileiro está avaliando com cuidado se as indústrias estão dispostas a construir uma fábrica de semicondutores no país? As indústrias européias estão dispostas a investir? Mandelson: Elas estão comprometidas seriamente. É por isso que eu digo que a opção européia está ligada à produção e as possibilidades de pesquisa e desenvolvimento. Oferece oportunidades significativas de investimento e emprego, assim como vantagens internacionais em relação ao padrão japonês, que, por definição, isola o Brasil. É por isso que eu digo que a questão deve ser avaliada de forma objetiva e ampla, considerando o interesse da economia do país.