Título: EUA querem ver Doha concluída ainda este ano
Autor: Raquel Landim e Francisco Góes
Fonte: Valor Econômico, 03/04/2006, Brasil, p. A4

O representante comercial dos Estados Unidos, Robert Portman, deixou claro que o país deseja concluir as negociações da Rodada Doha até o fim do ano e está disposto a flexibilizar suas posições para que isso ocorra. "As negociações já duraram tempo suficiente. São quatro anos e meio", disse Portman ao Valor. Ele afirmou que aceitaria uma redução um pouco menos agressiva das tarifas agrícolas desde que signifique um incremento real de comércio. "Podemos viver com algo entre nossa oferta e a do G-20", disse. "Nossas posições não são pegar ou largar." Nelson Perez/Valor Portman: "Adoraríamos sentar com o Mercosul e trabalhar por um acordo; meu objetivo pessoal é abraçar o Mercosul" Portman acrescentou que "adoraria ver a TPA (Trade Promotion Authority) prorrogada, adoraria que não fosse um limite", mas disse que o risco é grande, já que da última vez o Congresso demorou oito anos para renová-la. Ele respondeu as críticas do comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, que disse que o limite estabelecido pelos americanos é como "levar um revólver para as negociações". A TPA é uma autorização concedida pelo Congresso para que o Executivo conduza as negociações comerciais. Portman garantiu que os Estados Unidos querem negociar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mas não vão impor um acordo e não parece haver interesse do Mercosul. Ele ressaltou que está negociando acordos de livre comércio com muitos países da América Latina. "Longe de isolar o Mercosul, quero abraçar o Mercosul", disse. Ex-deputado por Ohio, Portman ocupa hoje o cargo de chefe do USTR (United States Trade Representative), uma espécie de ministro de Comércio dos EUA. Ele concedeu entrevista no sábado à noite, após se reunir com Mandelson, o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, e o diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), Pascal Lamy, no Hotel Copacabana Palace.

Valor: Quais foram os resultados da reunião que permitem enxergar avanço nas negociações? Robert Portman: Cumprimento Amorim por organizar esse encontro. Esse não é um encontro para chegar a uma decisão, porque não representamos a OMC, mas esses são os três maiores jogadores. Fizemos algum progresso em acesso a mercados agrícolas, apoio doméstico agrícola e acesso a mercados de produtos industriais. Não chegamos a um acordo, mas estamos algumas polegadas mais próximos. E concordamos em continuar tentando. O resultado da reunião é que estabelecemos uma série de projetos para os negociadores em Genebra trabalharem.

Valor: É possível alcançar a estrutura do acordo até o prazo de 30 de abril? Portman: Vamos ver. As negociações já duraram tempo suficiente. São quatro anos e meio. Sabemos quais são as questões. Se perdermos o prazo de 30 de abril será difícil completar nosso trabalho no fim do ano. Este é o primeiro de três prazos: 30 de abril para as modalidades ou estrutura nas três principais áreas; julho para as negociações de serviços e para o calendário de corte de tarifas; e o fim do ano. Se não cumprirmos, podemos perder a oportunidade, considerando o sistema americano, a Autorização para Promoção do Comércio (TPA), que permite que o presidente mande um acordo para o Congresso votar sim ou não. Sem isso, pode não ser possível, do meu ponto de vista, passar o acordo pelo Congresso. O acordo poderia ser modificado de uma maneira que Brasil ou União Européia não concordariam.

Valor: O fim da TPA estabelece um limite para a negociação da OMC? O comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, afirmou que funciona como levar um revólver para as negociações. Portman: Adoraria ver a TPA prorrogada, adoraria que não fosse um limite. Mas há um grande risco em apostar que podemos renová-la. Da última vez levou oito anos. Expirou em 1994 e não foi renovada até 2002. Além disso, não é ruim ter um prazo para cumprir. Sem um limite é difícil forçar todos nós a tomar decisões tão complicadas. Também há outras razões. Temos eleições a caminho no Brasil, na França, na Índia, em quase todas as maiores democracias.

Valor: O sr. acredita que as eleições no Brasil este ano podem afetar as negociações? Portman: Se o presidente Lula for reeleito - o que eu entendo que é provável neste momento com base nas pequisas - pode não afetar muito. Mas, obviamente, também há uma mudança de governo nos Estados Unidos em 2008. E o mesmo acontecerá em muitos países europeus. Serão novas negociações e novas posições.

Valor: Os EUA propuseram redução total no apoio doméstico aos produtores agrícolas de 75%. O G-20 está pedindo que o país corte 75%. E a UE sinalizou, informalmente, que desejaria ver um corte de 65%. Os EUA estão preparados para cortar mais? Portman: Os EUA deram um grande passo no fim de outubro e apresentaram sua proposta de apoio doméstico, incluindo um corte de 65% nos subsídios mais distorcivos, a "caixa amarela". Foi mais do que esperavam os observadores. Um acordo foi fechado em 2004 para limitar a "caixa azul" (subsídios menos distorcivos ao comércio), em 5% da produção. A proposta dos EUA foi além e limitou em 2,5%. No que diz respeito a apoio doméstico, colocamos uma proposta agressiva na mesa. Agora estamos esperando os outros equipará-la em acesso a mercados. Se as ofertas de acesso a mercados estiverem na mesa, aceitamos avaliar nossa proposta de apoio doméstico. Deixamos isso claro desde o início. Alguns, incluindo a União Européia, disseram que é pegar ou largar, mas nós nunca afirmamos isso. Os EUA têm grandes ambições nas três áreas.

Valor: O sr. disse que a oferta americana de apoio doméstico está condicionada ao que o país obtiver em acesso a mercado. Mas sua proposta de corte de tarifas agrícolas é a mais agressiva. O sr. retirará sua proposta da mesa se a UE não oferecer mais em acesso a mercado? Portman: Nossas posições não são pegar ou largar. Na verdade, dissemos apenas que acreditamos ter a melhora proposta de acesso a mercados e explicamos o por quê. Mas também podemos viver com algo entre nossa oferta e a do G-20. Somos flexíveis em nossas posições, mas não é possível ter uma Rodada Doha bem sucedida sem acesso a mercado. Para sustentar nossa proposta em apoio doméstico e cumprir o que diz o mandato da Rodada Doha, precisamos de acesso a mercado que signifiquem novos fluxos de comércio nos Estados Unidos, mas também em outros mercados agrícolas protegidos do mundo como a Europa, o Japão e a Coréia.

Valor: Mandelson e o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, disseram que o Brasil deve aceitar uma redução substancial das tarifas industriais. O sr. concorda? Portmam: Discutimos muito essa questão. O Brasil tem um papel importante unindo os países do G-20. Em produtos manufaturados, porém, acreditamos que os países em desenvolvimento têm de fazer mais. Em muitos países, as tarifas consolidadas são muito altas e as tarifas aplicadas relativamente baixas. Precisamos de uma fórmula que realmente reduza as tarifas aplicadas. Tem havido um debate sobre o número e a fórmula, mas ainda não chegamos lá.

Valor: Mas o sr. considera suficiente a oferta brasileira de cortar as tarifas industriais em pouco mais de 50%? Portman: Deixo Amorim falar por si, mas uma das propostas que ele comentou está próxima desse número. Não tenho certeza se Amorim concordaria com isso publicamente nesse ponto da negociação (corte de 50%), mas para responder à pergunta, o problema com as propostas atualmente na mesa é que elas não reduzem as tarifas aplicadas o suficiente para permitir novos fluxos de comércio.

Valor: O G-20 quer disciplinar a "caixa azul". O setor privado brasileiro diz que é preciso dividir esses subsídios entre diversos produtos. O sr. concorda? Portman: Concordamos que há uma questão sobre concentração (dos subsídios) e podemos discutir esse ponto.

Valor: Mandelson disse que a proposta americana de apoio doméstico é incompleta, porque não altera os programas de ajuda alimentar. Para a Europa, esses programas funcionam como um subsídio à exportação. Portman: Temos uma oferta sobre ajuda alimentar na mesa há pelo menos seis meses. Talvez eu devesse mandar a ele (Mandelson) outra cópia. Recentemente os países africanos fizeram sua própria proposta de ajuda alimentar, que também discute se ocorre desvio de comércio. Uma das questões que mais me impressionou, particularmente, em Hong Kong, é que focamos tanto nisso em um momento em que não há ajuda alimentar suficiente. Desejaria contribuir com mais ajuda alimentar, não com menos. Em um país como o Sudão é muito importante que a comida seja entregue e não dinheiro. Oferecer apenas dinheiro como querem os europeus pode não suprir a necessidade das pessoas. Queremos continuar oferecendo comida. E precisa ser comida, não dinheiro.

Valor: Os Estados Unidos ainda estão interessados na negociação da Alca e por que as discussões estão paradas? Portman: Nós estávamos muito interessados em falar sobre esse assunto com Amorim. A realidade é que os Estados Unidos nunca vão impor um acordo a ninguém. Cabe às duas partes avançarem juntas e neste momento não parece haver forte interesse dos países do Mercosul. Nós estamos muito interessados e continuamos a discutir. Acho que a Alca faz sentido para o Brasil, nos coloca em um mercado comum do hemisfério ocidental e haverá grandes vantagens, em especial com a competição global cada vez mais forte imposta pela Ásia. Achamos que podemos tirar vantagens em termos de eficiência no hemisfério ocidental, seguindo o modelo do Mercosul ou do Nafta. Então a Alca pode ter grandes benefícios para os dois lados e nesse meio tempo os Estados Unidos estão completando uma série de acordos de livre comércio. Só no último ano nós nos acertamos com vários países da América Latina. Estamos internalizando a legislação para trazer os seis novos parceiros do Cafta. Nos últimos três meses, negociamos novos acordos com Peru e Colômbia. Estamos muito perto e acreditamos que podemos fechar um acordo com Panamá e Equador. Há alguns anos, já tínhamos fechado acordo com o Chile.

Valor: Analistas no Brasil dizem que esses acordos são uma estratégia para isolar o Mercosul no continente... Portman: De jeito nenhum. Eu já tive uma conversa franca com o Celso Amorim, que se tornou um grande amigo, e nós adoraríamos sentar com o Mercosul e trabalhar por um acordo. Nossos acordos são bem amplos, incluem agricultura, serviços, bens industriais e propriedade intelectual. Mas nem todos os países querem fazer parcerias conosco. Acredito que as experiências que temos, incluindo o México, são muito positivas. Há duas semanas, estive com o ministro de Comércio do México para a reunião anual do Nafta e nós avaliamos os dados dos Estados Unidos, do México e do Canadá e concluímos que tem sido positivo para todos os países. Meu objetivo pessoal, longe de isolar o Mercosul, é abraçar o Mercosul.

Valor: O sr. acredita que será preciso primeiro chegar a um acordo na Rodada de Doha para só depois retomar as negociações da Alca? Portman: Não seria necessário. A Rodada Doha está se movendo. Eu ia dizer que a rodada está se movendo muito rápido, mas vamos ver. Se conseguirmos completar a Rodada Doha neste ano, ela provavelmente vem primeiro. Só por uma questão prática, porque leva algum tempo para os negociadores chegarem a um acordo, pelo menos um ano.

Valor: Os Estados Unidos já eliminaram o maior de seus programas de subsídios ao algodão, conhecido como Step 2, mas ainda têm de reduzir subsídios internos conhecidos como pagamentos contracíclicos e empréstimos de mercado para cumprir as determinações do comitê de arbitragem da OMC, favoráveis ao Brasil. O sr. fará isso? Como e quando? Portman: Obviamente esse é um tema que faz parte de outra discussão. Se você olhar a proposta dos Estados Unidos em apóio interno, ela inclui mudanças nas caixas amarela e azul, nas quais os programas de empréstimo ao mercado e pagamentos contracíclicos se encontram respectivamente. A lei agrícola americana é escrita a cada cinco ou seis anos e, por coincidência, será reescrita no ano que vem. Então todos esses prazos (do painel) acontecem junto à Rodada Doha e com a lei agrícola (Farm Bill).