Título: Papel da sociedade na pauta da campanha
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 03/04/2006, Política, p. A8

Em nome da ética política, acirra-se cada vez mais a polarização entre os defensores do presidente Lula e os da candidatura do ex-governador Geraldo Alckmin. Vislumbra-se uma campanha baseada em denúncias sobre os escândalos alheios, numa luta para classificar o outro como "o mais corrupto". Sem desmerecer a importância da probidade administrativa e da honestidade política, temo que as estratégias dos partidos priorizem esta questão em detrimento da discussão dos enormes problemas do país. Pior: a imprensa, que obviamente deve fiscalizar os atos dos homens públicos, pode se tornar mero palco deste embate moral, quando deveria fornecer aos eleitores informação necessária para que saibam quais são as causas e as possíveis curas para nossas mazelas. Investigar a participação do alto escalão petista, incluindo o ex-ministro Palocci, na quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo é essencial para resguardar os direitos dos cidadãos brasileiros. Do mesmo modo, é preciso informar o leitor sobre as 69 CPIs "engavetadas" pela base parlamentar do governador Alckmin na Assembléia Legislativa paulista. Mas se o debate eleitoral ficar apenas em temáticas das páginas policiais, fica impossível fazer uma escolha eleitoral capaz de antever quais serão as políticas do próximo presidente da República. Este tipo de embate interessa à parcela da classe política. Do lado da oposição, muitos vêem nas denúncias contra integrantes importantes do governo Lula a única forma de ganhar a eleição. A disputa presidencial tornar-se-ia um plebiscito contra os valeriodutos e afins. Tal comportamento geraria uma reação petista no mesmo diapasão. Escândalos dos anos FHC seriam relembrados, provavelmente de forma exagerada, e a vida política de Alckmin seria recontada por meio de uma série de fatos desabonadores. A campanha na TV lembraria as primeiras que tivemos na redemocratização, com "reportagens" descobrindo o lado podre do adversário e uma enxurrada de direitos de respostas - e os eleitores, obviamente, ficando cada vez mais enojados com a política. Enquanto isso, a mídia de qualidade procuraria equilibrar o jogo de acusações, como bem mostrou o ombudsman da "Folha de S. Paulo", Marcelo Beraba.

-------------------------------------------------------------------------------- Debate deve ir além da questão da corrupção --------------------------------------------------------------------------------

Mas será que interessa à sociedade e à imprensa pautar-se pela campanha da difamação recíproca? Afinal, se os políticos oposicionistas e governistas estão tão indignados com os desvios éticos do outro, que somados levariam a uma "bandalheira geral", por que não alteram as regras institucionais que favorecem a corrupção e afins? Se o Congresso gastasse mais o seu tempo discutindo legislação referente às reformas administrativa e político, e o Executivo se preocupasse menos em se proteger, os últimos meses, desde a famosa entrevista do deputado e réu confesso Roberto Jefferson, teriam sido de melhor proveito para o país. Se for para discutir seriamente o tema da corrupção, a campanha presidencial terá de ser centrada em propostas de melhoria das instituições. Quem será o primeiro candidato a assumir a agenda proposta, por exemplo, pela Transparência Internacional? E para rumar ainda mais contra a corrente, será que o debate não está de tal modo exagerado que a classe política estaria sendo pintada como uma cleptocracia similar ao que ocorria em Uganda com Idi Amin Dada ou com o Paraguai de Alfredo Stroessner? Tudo bem que petistas não são puros como vendiam ao eleitorado brasileiro, e tucanos têm histórias mal contadas pelo caminho. Ademais, desconfiar dos governantes é uma tarefa democrática saudável. Porém, a elite política atual é muito mais vigiada e comprometida com valores republicanos do que a do passado. Mais do que isso, há problemas tão ou mais importantes do que a corrupção que precisam ser discutidos. Os setores organizados da sociedade podem mudar a pauta da campanha presidencial. É claro que uma parte da discussão deve ser sobre corrupção, mas precisa ser alicerçada mais em propostas do que em acusações. E o grosso do debate tem de ser sobre o modelo de desenvolvimento para o Brasil do século XXI. Decerto que ao discutir, por exemplo, a necessária e urgente modernização da administração pública, reduzindo a exagerada e nefasta politização do alto escalão governamental, caminha-se para evitar o jogo "rent-seeking" presente nas nomeações e na troca de cargos por votos no Congresso. Ao lembrar que as duas Caixas Econômicas foram personagens de graves denúncias nos últimos dias, cabe repensar o papel e a gestão das estatais. Um passo neste sentido seria exigir dos candidatos que tocassem em assuntos fundamentais para o futuro do país, por meio de debates públicos organizados por associações da sociedade civil, além de seções obrigatórias no jornalismo impresso e televisivo. Tenho mais interesse em saber o que Lula e Alckmin têm a dizer sobre a Previdência, a Educação, o caos das Regiões Metropolitanas e Política Externa do que em descobrir a "verdadeira" história do mensalão ou de Furnas. Afinal, eles deveriam se preparar mais para resolver os enormes problemas brasileiros do que para responder às acusações dos adversários. E caso adotem a estratégia contrária, não teremos como avaliar se cumpriram o programa de governo apresentado na eleição. O próximo presidente, ademais, não poderá ficar enredado nas lutas políticas do passado, originadas do embate que PSDB e PT travam desde o período FHC. O futuro não nos dará muitas chances se o "retrovisor dos escândalos" for o norteador do jogo político a partir de 2007. Sentia-me solitário nestas preocupações até pegar um táxi na última quinta-feira. Velho conhecido, o taxista me perguntou: "professor, quando os políticos vão começar a falar dos problemas do povo e parar de se acusar? Será que eles querem que a gente acredite que são todos ladrões?" Imagino que, além dele, outros tenham esta visão. Por isso, a sociedade brasileira não pode ser cúmplice de um debate de tão baixo nível como o que estamos vendo.