Título: A força do mercado livre de energia elétrica
Autor: Paulo Pedrosa
Fonte: Valor Econômico, 03/04/2006, Opinião, p. A12

Novas tecnologias na gestão de grandes sistemas integrados e principalmente no campo da comercialização tornaram possível o antes impensável. Surgiram mercados de energia elétrica, identificando, a cada instante, quem produz e quem consome, as quantidades associadas e processando as múltiplas relações comerciais decorrentes. Por todo o mundo os mercados de energia se consolidam, com o aprendizado de mais de uma década. Nos EUA, Japão, Austrália, e mesmo na China, os modelos competitivos vêm sendo estabelecidos com sucesso. Na União Européia os consumidores não residenciais já são livres para escolher seus fornecedores, o que será uma realidade para todos ao final de 2007. No Brasil, o mercado de energia é uma realidade. Os consumidores livres respondem por mais de 18% de toda a energia elétrica comercializada. Somada a parcela de 4,5% dos autoprodutores, verifica-se que o mercado não atendido pelas distribuidoras já representa um terço do mercado cativo e um quarto do mercado total. Liberdade de escolha e competição explicam a força do mercado de energia. Nele os consumidores têm poder e responsabilidade. Tomam decisões, que consideram a sua realidade, seu orçamento, sua capacidade de ser mais eficiente ou usar outros energéticos. Assim, a soma de milhares de decisões individuais produz uma sinergia que aumenta a produtividade do país. Essa liberdade de escolha é fruto de uma visão amadurecida de governos e da sociedade em relação ao papel e responsabilidade dos consumidores e produtores de energia. É parte do movimento histórico de fortalecimento das economias de mercado e da própria democracia. Quando apoiada em boas plataformas regulatórias, promove o uso mais eficiente dos ativos do setor, induz investimentos e traz benefícios reais e de longo prazo, conforme demonstra a Agência Internacional de Energia (IEA) em seu relatório anual de 2005. A Agência afirma que os mercados estão melhor equipados para enfrentar os desafios e explorar as oportunidades de um futuro com mais diversidade, como o que já se descortina no cenário global. A Organização Econômica para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE) indica que a ampliação dos mercados nos setores regulados, com destaque para o elétrico, pode gerar ganhos de até 3% nas economias dos EUA e Europa, ou benefícios ainda maiores em função dos incentivos à inovação, um dado que convida à reflexão sobre nosso país, cujo crescimento do PIB tem sido, há duas décadas, inferior à média mundial. O desenvolvimento do mercado por meio de decisões individuais e descentralizadas amplia a transparência, promove a eficiência, distribui e reduz riscos e é um dos pontos mais relevantes para a consolidação do setor elétrico no país. Temos a imensa vantagem de ter construído um dos maiores sistemas interligados do mundo, uma extraordinária base física, essencial para o desenvolvimento do mercado. A partir desse pré-requisito, uma regulação sintonizada canalizará as forças do processo competitivo, maximizando o potencial do sistema interligado e promovendo a produção e o uso eficiente de energia, com benefícios para toda a sociedade.

-------------------------------------------------------------------------------- O desenvolvimento do mercado por meio de decisões descentralizadas amplia a transparência e promove a eficiência --------------------------------------------------------------------------------

O mercado provou ser útil em todas as situações. Na crise, com os certificados de energia, demonstrou ser capaz de oferecer uma solução eficiente e menos traumática para reduzir a demanda. Na sobreoferta, permitiu que a energia barata fluísse e promovesse a competitividade da economia. Hoje, cresce na quantidade, mas principalmente na qualidade e na sofisticação dos produtos oferecidos, voltados para as necessidades particulares e individuais dos clientes, gerando valor para vendedores e compradores. Além disso, o desenvolvimento do mercado fortalece, justifica e preserva as agências reguladoras independentes e está na própria gênese da sua criação. A regulação voltada para o desenvolvimento do mercado - que diferencia agências reguladoras de agências executivas, autarquias e órgão de governo - promove a melhor alocação dos recursos disponíveis; incorpora e fortalece a componente de reação da demanda a sinais de preço e beneficia toda a sociedade. Estabelece o espaço para a inovação, a criatividade e a ampliação do conhecimento, gerando valor ao romper o paradigma do foco no suprimento e da eficiência energética e elétrica e alcançar a dimensão econômica da integração do setor elétrico com toda a realidade a "jusante" da produção e do transporte da energia. Mas não só de boas perspectivas vive o mercado de energia e algumas situações geram preocupações. Assim, o processo de audiência pública iniciado pela Aneel, no final do ano passado, com o objetivo de discutir a cobrança retroativa da chamada "Recomposição Tarifária Extraordinária" (RTE) é uma excelente oportunidade para mostrar ao mundo o amadurecimento de nosso ambiente regulatório. É uma situação kafkiana. Imagine o dono de um restaurante ou supermercado procurando um cliente para apresentar uma conta que retroage quatro anos, alegando que o que vinha sendo pago não permitiu lucro suficiente. Decisões foram tomadas em função do preço da energia e das regras vigentes. Investimentos foram concretizados, fábricas construídas, contratos firmados, empregos gerados, exportações realizadas. Agora tudo fica no ar, com a ameaça de uma cobrança absolutamente imprevisível. Se isso acontecer efetivamente ficará claro para qualquer um que o Estado brasileiro poderá voltar atrás em decisões, gerando custos que não existiam no momento da tomada de decisões. Aumentará tremendamente a percepção dos riscos de natureza regulatória, cujos efeitos ultrapassarão as fronteiras do setor elétrico, contaminando a economia como um todo. É importante evitar uma mudança de rumo na percepção do risco regulatório que, com certeza, provocaria enormes prejuízos ao país, paradoxalmente quando o risco-Brasil atingiu os níveis mais baixos de toda a história.

Paulo Pedrosa é engenheiro e presidente da Associação Brasileira dos Agentes Comercializadores de Energia Elétrica (Abraceel).